Benditos sejam os fones de ouvido, que permitem que as viagens em transporte público sejam mais prazerosas sem incomodar o passageiro ao lado e nos deixam ver vídeos no trabalho sem atrapalhar a produtividade do outro, apenas a nossa. 

Malditos sejam os mesmos, porém, por nos reforçarem a tendência de achar que já nos basta o mundo que se fecha em nós mesmos. Por estar no controle de tudo o que eu ouço, é fácil me enganar na ideia de que a minha realidade é a que está valendo e que aquela alheia a minha (se é que ela existe) não deve ter tanto valor. Isso pode valer pra muitas coisas, mas é especialmente forte em nossa percepção daquilo que mais associamos aos fones: música.

Não é exagero afirmar que uma maioria esmagadora da população gosta e consome música com alguma periodicidade. Mais do que isso, boa parte das pessoas coloca nas bandas e discos parte de sua identidade – “Fulano é roqueiro, Sicrano é pagodeiro” -, o que faz o assunto ficar íntimo demais, porque falar de música é falar de nós mesmos, e cada um tem uma percepção de si mesmo e dos outros (principalmente dentro das culturas de fones de ouvidos e de redes sociais, com pontos de vistas tão valorizados). 

Desse jeito, fica difícil estabelecer parâmetros para julgarmos o tema, principalmente se não estamos abertos a conhecer o que mais acontece na música hoje em dia.

Algumas discussões sobre o tema apareceram recentemente na mídia brasileira. Uma debatia a relevância de um circuito de menor escala para artistas percorrerem pelo país, enquanto outros com gênese semelhante conseguem hoje destaque entre um público muito maior (Criolo e Racionais MC’s, respectivamente, eram dados como exemplo). 

Emicida (cantando aqui com Rael em Goiânia) também entrou na questão e seu irmão e produtor, Evandro Fioti, respondeu sua versão.

A outra trazia a questão da superexposição midiática de Roberto Carlos em contraste com a exclusão da figura de Tim Maia tida por ele e por suas emissoras contratantes. Enquanto o último entrou pra história como uma figura quase heróica, o tal Rei possui hoje uma relevância inegável, porém datada. Ambos os debates possuem o mesmo tema de trazer um artista amparado por oportunidades que o outro não teve. Em paralelo, eles nos relembram como a música sempre vive períodos muito distintos, e isso ocorre tanto em sua produção, quanto na própria forma de consumi-la.

Há vinte anos, não tínhamos mp3 – ok, isso a gente lembra de vez em quando -, mas, há cem, não havia rádio. Em menos de um século e meio, fomos da música exclusivamente ao vivo ao streaming no celular. Daí, se faz menos de vinte anos que você pode ir até a música que quer pela Web, as grandes mídias foram a maior fonte de bandas e tendências para o público por mais de 70 anos. 

Ter isso em mente ajuda a compreender que a humanidade ainda não conseguiu aprender a lidar com o tema do consumo fonográfico, até porque ele sempre muda por natureza – algo que é tido como bom, faz sucesso e é ouvido te tal forma hoje está em um cenário completamente diferente pouco tempo depois. Essa mutabilidade é, muitas vezes, a única certeza que temos sobre a indústria musical.

Cantar rap é algo que tem apenas 30 anos e, para a Flora Matos cantar tranquila em Recife, a Chiquinha Gonzaga teve que abrir muitas portas no começo do século XX, quando isso era impensado.

Mas esse ecossistema, assim como qualquer outro, busca a sobrevivência de seus organismos. No caso da música, ela se adapta como movimento cultural, expressão artística e produto mercadológico de acordo com os fatores, mesmo que os indivíduos ocupados com seus fones de ouvidos não notem o que acontece ao seu redor. Existe hoje, no Brasil, uma certa “estrutura” (para não falar “cena”) de músicos, bandas, empresas, agências, casas de show e veículos de comunicação que sequer esbarram no esquema que é propagado para a maior parte da população, às vezes mostrado como o único em voga – como se dissesse “essa é a música principal” e apresentasse tudo o que não entra em seus moldes como uma “alternativa” a ela.

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Em um país com dimensões como o nosso, uma parcela da população bem inferior ao todo pode ser grande o bastante para essa tal estrutura começar a se organizar, algo que acontece cada vez mais em todos os anos. Quanto mais esses músicos investem em valores artísticos mais trabalhados do que as intenções comerciais das produções que miram nas massas, mais eles ganham respeito da crítica especializada, treinada especialmente para identificar e valorizar esses valores, mas também de um público cada vez mais exigente. Inclusive, em uma época em que pensamentos sobre diversidade, em qualquer âmbito, tem vozes crescentes, fica difícil se contentar com “mais do mesmo”.

E é aí que movimentos ditos “alternativos” ganham força para ser o próximo passo da música, para sua próxima transformação ser mais inclusiva de estéticas e formatos, talvez até mesmo de temas. É ingênuo pensar que o que hoje é “lado-B” terá posto de “mainstream” amanhã, tão ingênuo quanto achar que a dinâmica que vemos hoje com a música oferecida para a massa permanecerá assim por muito tempo. Essa estrutura, amparada por grandes empresas, também sempre encontrará meios de sobreviver bem. Lembre-se: essa é a música que vem até você mesmo se não for bem o que quer ouvir.

Por isso é importante que o cenário com menos chance de visibilidade seja bem cuidado, daí também a importância de oportunidades como as do SESC, que servem como celeiro para que surjam mais artistas como Criolo, enquanto grupos como Racionais MC’s, estabelecidos em uma fase anterior do mercado, podem continuar lotando as casas que atendem a demanda de um público maior.

Apresentação dos Racionais no VMB 2012, da antiga MTV, colhendo os louros de uma carreira longa e de muita briga pra chegar onde chegou

Incentivar esse movimento pode ser uma questão iniciativas do Estado e suas políticas públicas, é possível vir do apoio do capital privado e, tão importante quanto, pode partir de um público ativo. Tem a ver com ir ver um show – seja em centro cultural, teatro ou balada -, com desembolsar dez ou vinte reais para comprar um disco – digital ou físico – de vez em quando, com participações em financiamento coletivo, ou com recomendações pros amigos. A metamorfose dá um jeito de acontecer, mas podemos dar um empurrãozinho de vez em quando.

De qualquer forma, tudo começa com o exercício de tirar os próprios fones de ouvido de vez em quando e observar o que está acontecendo, com dar-se chances de experimentar novas maneiras de escutar e pensar música. Seja você roqueiro ou pagodeiro, o melhor é ser um bom ouvinte.

André Felipe De Medeiros

Crítico cultural, escritor, fotógrafo & arteiro no geral. Vive à base de música e café e gosta de notar a poesia nas pessoas, no riso e nas coisas que os outros ignoram. É o fundador do <a>Música Pavê</a> e colaborador do <a href="http://monkeybuzz.com.br/">Monkeybuzz</a>."