Empurrou o portão com as mãos coladas nas grades. Era como se uma corrente elétrica perpassasse seu corpo e o colasse junto às barras de ferro que se erguiam paralelas de baixo para cima, até as lanças lá no alto. Não queria entrar, mas não via outra alternativa se não a de falar com o tio e, por esse motivo, atravessa para o lado de dentro da casa com esse pesar.

Aos catorze anos, toda conversa mais séria com alguém de mais idade soa como provação. O tom de voz muda, os olhos parecem ganhar novos quilos e, desequilibrados, pendem para o chão todo o tempo. As mãos nos bolsos do shorts, de repente parece que todas as sujeiras corporais tão comuns dessa parte da infância se tornam manchas vexatórias, como se não estar limpo já maculasse a conversa em si, como se a comunicação entre adultos precisasse ser cheirosa e alva, livre de qualquer imundície. 

E ainda mais sobre aquele assunto. Estava evitando pensar na solução para sua coceira, queria apenas que os dias cuidassem da enfermidade e que pudesse simplesmente acordar certa manhã livre do comichão. Mas acontece que a coisa toda estava piorando e precisava tomar uma atitude que julgasse de homem. Decidiu que ia ao médico. Só que, quando realizou na cabeça o encontro físico com o alergista, lembrou-se que, para obter o diagnóstico correto e preciso, o doutor haveria de abaixar suas calças para ver em que estágio estava a micose que lhe atacava a virilha. Mesmo que, até a última vez que tinha conferido, o vermelhão não pegou o saco e nem seu pinto, nenhum profissional da saúde ordenaria que mostrasse apenas o vão entre bolas e coxa. Não. teria que mostrar tudo, frente e verso. E isso o deixava muito incomodado, a timidez causava desconfortos tremendos, só de se imaginar nessa situação já sentia os suores em bicas nas palmas das mãos e nas axilas, um buraco se abria nas vísceras feito fome, mas com o efeito oposto de fazê-lo perder o apetite e, para ajudar, começava a faltar força nas pernas e sentia as duas tremendo, quase batendo joelho contra joelho. Não dava pra ser assim.

Seu pai foi embora quando tudo o que sabia ainda eram três ou quatro palavras. Sem essa ajuda de quem deveria estar por perto, viu no tio que morava no bairro a oportunidade de receber ajuda. Só que, chegando em frente ao portão, sentiu o corpo transpirar e as pernas sacudirem. Mas era melhor se mostrar fragilizado assim para alguém da família do que para um estranho no posto de saúde. Mas o tio não estava. Na casa, o primo mais velho, uns vinte e tantinho, estava jogando videogame quando o garoto chegou. Mandou o moleque se sentar, ofereceu um suco, educadamente recusado. Questionou o motivo da visita do priminho que deu de ombros, os olhos obesos virados para os chinelos, as mãos entre os joelhos (para não fazer barulho caso batessem um no outro). “Tá assim por quê, meninão?”, perguntou o primo mais velho. E, sentindo a abertura, resolveu expor seu drama. Contou do acanhamento e do medo da vexação. Questionou se isso já ocorrera com o primo, se conseguiria resolver tudo sem mostrar o pinguelo, só com a virilha exposta. Só queria uma ajuda pra resolver seu pequeno problema (e sentiu a cara quente quando associou o “pequeno” com o pinto).

“Rapaz, mas você tá com vergonha de se mostrar? Que palhaçada é essa? E você é lá diferente dos outros?”, indagou o primo mais velho levantando tom de voz, mas sem tirar a atenção da partida de futebol do videogame. “Você é um homem ou um saco de batatas, afinal? Esse negócio de ter vergonha não combina com homem não, hein! Onde já se viu. Se for homem, ele vai querer ver seu pinto sim e aí você tá num beco sem saída. Agora, se for doutora mulher, vai também querer ver, tocar, te sentir. Daí você vai e aproveita, lógico. Vai lá e mostra o que você tem aí. Larga de frescura”, decretou enquanto apertava os botões do controle do videogame. 

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O rosto pegando fogo, suor generalizado e trepidação nos joelhos. Não lhe faltava mais nada e o garoto foi embora em silêncio e com o meio das pernas coçando. Mais tarde, o primo mais velho já tinha esquecido da conversa e foi se banhar para a aula de inglês. Estava empolgado porque iria entregar uma redação feita na última semana em que deixava, nas entrelinhas, que tinha interesse na professora, uma universitária que tomava conta de seus pensamentos quase que o dia todo. 

Na frente da escola de inglês, mostrou seu texto para o amigo. Queria saber se dava para entender suas indiretas para ela. Esfregava as mãos uma na outra e seu corpo pendia para os lados, como se dançasse uma canção surda, só em sua mente. Viu o amigo abrir um sorrisão e achou estar no caminho certo. Mas a boca aberta se tornou riso e, depois, gargalhada. “Caralho, cara, olha o tanto de erro que tem aqui. cacete, como você é burro! Vai ser engraçada a aula hoje. Obrigado por isso, já valeu me fez vir até aqui hoje”. 

O horror.

Errado? Não tava estiloso, envolvente, sensual? As imagens da professora olhando pra ele com cara de quem entendeu o recado e o bilhete junto com a nota pedindo para ele esperar no estacionamento depois da aula foram para o espaço e, no lugar, a cena da classe toda rindo e ela amassando sua redação e jogando fora tomou conta. Bochechas pelando, o sovaco inundando o tecido da camiseta, parecia que as dobras das pernas precisasse  ser apertadas nos parafusos, soltas as duas, molengas. 

Na sala, a professora chegou animada para ouvir, em inglês, os textos com o tema proposto por ela na última aula. Chamou primeiro, como precisaria ser, o primo mais velho. “Vem ler sua redação aqui, do lado da minha mesa”. As pupilas fatigadas com o peso recente da vergonha se viraram para a mesa e, com a voz embargada, disse que não tinha conseguido terminar a redação. Desapontamento e nota baixa. Preferiu assim ao ver no rosto dela o escárnio.

Naquela noite, nenhum primo conseguiu dormir, cada um em seu drama pessoal, olhando o escuro do teto e repetindo na memória: “Você é um homem ou um saco de batatas?”

Homem não pode ter vergonha.

É, tem razão.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados