Em 1942, na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro, Mário de Andrade proferiu uma palestra chamada O Movimento Modernista, onde ostensivamente faz um histórico do movimento.
Entretanto, no final, ele muda subitamente de tom e faz uma auto-crítica cruel de tudo o que não conseguiu fazer como escritor.
São palavras duras e tocantes. Me fizeram chorar mais de uma vez.
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Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muitas coisas! E no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram.
Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de meus companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço… E outra coisa senão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fazendo, não me levaria a essa confissão bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo.
Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Devíamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura.
E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma vez só pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz.
Não me imagino político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Amador Bueno qualquer, falando “não quero” e me isentando da atualidade por detrás das portas contemplativas de um convento. Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando os louros fáceis de um xilindró.
Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido de que deveríamos ter nos transformado de especulativos em especuladores. Há sempre jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do mundo. Não.
Viramos abstencionistas abstêmio e transcendentes. Mas por isso mesmo que fui sinceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas as minhas cartas à vista, alcanço agora esta consciência de que fomos bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade…
Tudo o que fizemos… Tudo o que eu fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que vivemos. É aliás o que, com decepção açucarada, explica historicamente. Nós éramos os filhos de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre. E já mostrei que o movimento modernista foi destruidor. Muitos porém ultrapassamos essa fase destruidora, não nos deixamos ficar no seu espírito e igualamos nosso passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais novas.
Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não terei passeado apenas, me iludindo de existir?… É certo que eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças dos homens. É certo que pretendi regar a minha obra de orvalhos mais generosos, suja-la nas impurezas da dor, sair do limbo “ne trista ne lieta” da minha felicidade pessoal. Mas pelo próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez sensualíssima do individualismo, não me era possível renegá-los como um erro, embora eu chegue um pouco tarde à convicção de sua mesquinhez.
A única observação que pode trazer alguma complacência para o que eu fui, é que eu estava enganado. Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguém não imagina o quanto, a minha obra - o que não quer dizer que se não fizesse isso, ela seria melhor… Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, beleza divina.
Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado.
Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na rampa dos cinquenta anos e que os meus gestos agora já são todos… memórias musculares?… Ex omnibus bonis quae homini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva morte… O terrível é que talvez ainda nos seja mais acertada a discreção, a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade, macaqueando as atuais aparências do mundo. Aparências que levarão o homem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas. O Homo Imbecilis acabará entregando os pontos à grandeza do seu destino.
Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar para depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amelhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade.
Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões.
Aos espiões nunca foi necessária essa “liberdade” pela qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem?… Será que o direito é uma bobagem?… A vida humana é que é alguma coisa a mais que as ciências, artes e profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que ha-de vir.
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Mário de Andrade fala como se fosse um ancião às portas da morte, apesar de contar apenas 49 anos. Teria presumivelmente mais vinte ou trinta anos de vida artística e produtiva pela frente.
Mas alguma coisa ele deveria saber: de fato, morreu pouco menos de três anos depois, de ataque cardíaco fulminante.
Me pergunto se Mário já não estava um pouco morto desde aquela palestra, se a gente mesmo não se mata por conta própria, se o coração não dá só o enfarto de misericórdia.
Enquanto isso, vou aqui fazendo tudo o que posso, como escritor e como cidadão, para nunca merecer uma autocrítica dessas.
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