Em 2008 eu estava concluindo o curso de Tecnologia em Artes Gráficas em Curitiba, especificamente na etapa do Trabalho de Conclusão de Curso, que fiz com meu companheiro da graduação e da vida, o Augusto. Era fim daquele pedaço das nossas vidas e a única certeza era de que o curso superior não nos apontava para caminho algum.

Mas o TCC era uma possibilidade de participar de um projeto pelo qual eu realmente me interessava. Propusemos então um documentário de entrevistas sobre design, tendo como foco relações entre pessoas, espaços e artefatos cotidianos.

Toda essa ideia de fazer um documentário havia despertado alguns anos antes do TCC, quando em curso de documentário descobri Eduardo Coutinho.

 

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Legenda: Eduardo Coutinho | Fotografia: Vavá Ribeiro

Coutinho nasceu em 1933 e é um dos cineastas mais significativos do Brasil, responsável por documentários como Cabra marcado pra morrer (1985),  Boca de lixo (1993)Santo Forte (1999)Edifício Master (2002)Jogo de cena (2007).

Encantados pela abordagem de Coutinho decidimos que esta poderia apoiar nosso trabalho final e é mais precisamente sobre esta “técnica de abordagem de pessoas” que quero contar. O TCC em si não resultou em nenhuma obra-prima, mas deu pra aprender um bocado sobre vida, pesquisa, pessoas.

 

Imagens do filme “Edifício Master” (2002), de Eduardo Coutinho. Espaços iguais, modos diferentes de habitar e viver
Imagens do filme “Edifício Master” (2002), de Eduardo Coutinho. Espaços iguais, modos diferentes de habitar e viver

A maneira como Coutinho conduz suas entrevistas em seus filmes é bastante particular: não há roteiro ou mesmo tema pré-determinado, mas sim um dispositivo que conduz, mas não define antecipadamente que filme será aquele. Em Edifício Master, por exemplo, seu dispositivo foi entrevistar moradores de um prédio de classe média de 12 andares, com 276 apartamentos conjugados e cerca de 500 habitantes, localizado na cidade do Rio de Janeiro a uma quadra da praia de Copacabana.

Como explica Coutinho, ‘Filmar 10 anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário’. Definições mais precisas sobre como seriam as entrevistas, o fio condutor dos relatos ou temáticas resultantes dos depoimentos fazem parte de um processo de descobertas, a ser realizado ao longo da pesquisa, produção e edição do documentário. Coutinho trabalha assim em boa parte de suas produções, um conjunto de premissas que foi construindo com o tempo e as experiências.

Abaixo, alguns trechos do belo livro O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo de Consuelo Lins, que acompanhou o cineasta em alguns de seus projetos:

 

“A possibilidade de ´filmar o que existe´, ou de aceitar ´tudo o que existe pelo simples fato de existir’, é um dos efeitos dos dispositivos de Coutinho.”  (p. 12)
O diretor tenta compreender o imaginário do outro sem aderir a ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer ordem, ironias ou ceticismos, sem achar que o que está sendo dito é delírio, superstição ou loucura – ‘O que o outro diz é sagrado’. Sabe também que o seu imaginário pode ser tão frágil quanto o do outro.” (p. 107)
“Pois se ‘de perto ninguém é normal’, outra formulação também verdadeira é: ‘de perto todo mundo é  normal’. Tudo é e não é, como diz Guimarães Rosa: ‘Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!’. O perturbador é justamente encontrar no latifundiário, no ditador, no monstro, aquilo que o aproxima de nós.” (p. 23)
“O triunfalismo é o pecado mortal, porque promete uma coisa que a realidade não vai dar. Você tem que conhecer o mundo, não adianta forjar o mundo. É a incapacidade de olhar o real e negociar com o real, a incapacidade de ver o outro, de aceitar o outro no que ele tem de ambíguo, o que limita o alcance do filme.” (depoimento de Eduardo Coutinho, p. 83)
“Se prestarmos atenção às perguntas de Coutinho em seus filmes, muitas vezes ouvimos ele dizer: ‘Explica isso pra mim'[…] Essa é sua forma de estar ‘vazio’. ‘Isso é bom ou ruim?’, é outra pergunta bastante freqüente. Seja para um morador da favela, para um catador do lixão, para uma garota de programa ou para um operário que trabalha duro. As situações para ele não estão definidas, podem ser boas, ruins ou as duas coisas ao mesmo tempo. Coutinho tenta, na medida do possível, não fazer avaliações sobre o que está vendo ou ouvindo. Em muitos momentos, indica apenas que está à escuta, retomando palavras do próprio entrevistado para que ele desenvolva seu pensamento.” (p. 149)

E em O cinema do Real, organizado por Maria Dora Mourão e Amir Labaki, Coutinho explica:

 

“[…] devemos ir a esses encontros o mais vazio possível de ideologias e do próprio passado, para saber realmente as razões do outro, já que as minhas não interessam. Evidentemente esse vazio nunca é pleno, porque nunca chegamos ao absoluto das coisas.
De todo modo, essa disposição de estar vazio, de se colocar entre parênteses, é um ponto essencial. […] De qualquer forma não existe manual que explique isso, é um processo difícil. E o fato é que quanto mais você se esquece de si mesmo, mais você está sendo você mesmo. Tudo isso é um jogo e, na verdade, resulta em personagens que são o nosso encontro, meu e daquela pessoa, porque não é ela, nem sou eu.
Ela existe porque está numa narração, ela fala tal coisa porque está diante de uma câmera, isto é, está numa situação que eu lhe proporcionei, e tento fazer minha visão dela para ela quando o filme estiver pronto. (p. 131)

O resultado desta sensível abordagem é bonito de se ver nos filmes de Coutinho. Pessoas falando do cotidiano, banal e ordinário em profundidades e ambiguidades que não estamos acostumados. Telejornais, novelas, programas de auditório, falas de celebridades e tantas outras representações midiáticas são tão comumente roteirizados e reducionistas que, muitas vezes, excluem nuances, pluralidades, contradições e sentidos múltiplos que compõe qualquer pessoa e situação.

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Em Jogo de cena (2007), Coutinho apresenta depoimentos de mulheres e os mesmos depoimentos interpretados por atrizes
Em Jogo de cena (2007), Coutinho apresenta depoimentos de mulheres e os mesmos depoimentos interpretados por atrizes

Coutinho mostra que o cotidiano pode ser complexo e encantador, depende de como olhamos e exploramos seu território. Há uma grande diferença entre perguntar “Isso lhe faz mal, não é?” ou “Me explica como se sente em relação a isso”.

No primeiro caso insinuamos uma resposta e talvez, nosso desejo. No segundo, ampliamos possibilidades. E assim é possível tanto inventar pessoas segundo nossas visões quanto acessar espaços ainda inexplorados pelo nosso olhar. Uma pessoa é também uma teia de significados e histórias.

Uma das entrevistadas do nosso trabalho foi minha tia: a Vera. Descobri uma pessoa que não conhecia realmente, uma rotina singular, de detalhes expressivos, sabedorias e saberes. Foi uma descoberta prazerosa conhecer outras dimensões da minha tia Vera.

Também documentarista, Michael Rabiger avisa: pra colher histórias significativas é preciso “aprender a ouvir, aprender a não julgar”, complementando que estas e outras, são “habilidades que podemos melhorar no decorrer da vida”.

É certo que posicionamentos menos fluidos são necessários em outros tipos de documentários e situações da vida, mas na dinâmica adotada por Coutinho parece residir uma sabedoria: para conhecer é preciso desprendimento. Um “vazio” como ele mesmo explica, um silêncio atento e presente.

Rubem Alves deve concordar, pois já disse que “só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar.”

E como seria levar este “vazio” e “não julgamento” estabelecidos nas abordagens de Coutinho e Rabiger para nossas relações, na maneira como interpelamos amigos, familiares ou pessoas com as quais esbarramos eventualmente?

Apesar do aprendizado da experiência, demorei a perceber que esta não é uma conduta para se assumir apenas em documentários de entrevistas, mas diante da vida. Pois o que existe, como diz Coutinho, não sou eu, não é você, mas a relação que criamos a partir de uma determinada interação. Encarar o familiar como desconhecido é uma postura que exige muita prática, não é nada fácil, tropeço diariamente neste exercício. Mas pode resultar em belas descobertas.

Frequentemente, as mudanças externas que tanto desejamos dependem também da nossa capacidade em desconstruir as ideias que fazemos das pessoas, lugares, experiências. Uma pessoa pode deixar de ser o que narramos ou pensamos sobre ela e ao invés de, pelas nossas lentes, ser pesada âncora, transformar-se em mar de possibilidades, movimento e profundidade, muito além de qualquer rótulo.

É só a duvida que nos une e nos aproxima. É só disso que precisamos. Não acredito que haja nada verdadeiro. Tenho muito medo da verdade. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, a quem perguntei “o que é a fé?”. Ele me respondeu que a fé é a duvida, porque somente ela nos é possível. Quando uma pessoa encontra a verdade, a única coisa que ela adquire é a impossibilidade de ouvir o outro. Ela só fala, não ouve mais. Quem encontra a verdade, só fala!”
Bartolomeu Campos de Queirós, citado por Abujamra no programa “Provocações” da TV Cultura.

A Maristela, professora e amiga que guiou toda esta viagem, também nos ensinou a contextualizar nossas palavras, deixar espaços abertos na escrita, cuidando sempre não aprisionar ou reduzir os sentidos.

Aprendemos a pesquisar, a buscar associações que ainda não foram feitas, a consultar mapas antigos, mas também construir nossos próprios roteiros. Sensibilizamos nossos ouvidos.

Pesquisas e pessoas não cabem em nossos processos de pensamento e linguagem. Felizmente, “esperneiam”. (referência a citação de Jean-Lous Comolli que Consuelo Lins traz no livro: “o mundo decididamente não cabe nos procedimentos de filmagem que inventamos. Ele felizmente ‘esperneia'”).

 

Se quiser saber mais:

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2005.

RABIGER, Michael. Uma conversa com professores e alunos sobre a realização de documentários.In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (org.). O cinema do Real. São Paulo: Cosic Naify, 2005.

Ana Claudia França

Professora da UTFPR. Dedica-se à pesquisa e desenvolvimento dos temas: Design, Cultura, Imagem e Comunicação. Interessa-se por tudo que possa melhorar relações entre pessoas e a vida em sociedade. <a>Escreve também em seu blog</a>."