Você se dispõe a ouvir uma pessoa e logo descobre que ela descreve cada cena como se fosse essencial para explicar a situação e justificar suas aflições. “Ele disse isso, eu respondi assim, ele estava olhando para a esquerda, uma semana antes outra pessoa agiu assim, o email dele dizia que…” Depois de três horas, tudo o que você recebe é uma narrativa gigante, produzida pela mesma mente romântica e noveleira que nas primeiras noites buscava por momentos inesquecíveis a cada mensagem, perfume, música, expressão facial.
Se você focar apenas nos fatos, distraído pelos episódios externos apontados incessantemente, acabará oferecendo conselhos do tipo “Fale isso, tente agir assim…”, o que apenas manterá o outro girando, como um motoqueiro no globo da morte. Por outro lado, se durante as três horas você mantiver sua atenção no corpo, nos olhos perturbados, no fluxo emocional e nas posições mentais do outro, verá que as histórias não importam tanto quanto a perspectiva pela qual elas são vividas. Sugerir isso parece um absurdo em nossa cultura psicologizante, na qual frequentemente atuamos como detetives: “O que ele quis dizer com isso?”
Já ouvi de tudo, de “Não te amo mais” e “Não sinto mais tesão” até a história inteira da relação recontada de modo negativo, como um grande erro. Sempre que acreditei, reagi e sofri, às vezes com a pior das perguntas: “Tem certeza disso?” Ora, as pessoas transitam entre diversos estados mentais que colorem a experiência. Sem tal clareza, solidificamos uma emoção transitória cada vez que a confundimos como sendo a própria pessoa.
Grandes sofrimentos por vezes começam no foco exagerado em detalhes, ampliados até se parecerem com uma realidade permanente. Ao recontá-los de novo e de novo durante uma crise, não deixamos espaço de respiro e novidade, como se não conseguíssemos tirar os olhos das grades de uma prisão. Portanto, um bom jeito de ouvir o outro é encarar a história como se fosse uma mentira, um sonho, um filme, uma peça de teatro que deixou a pessoa perturbada.
Na maioria das vezes, não funciona dizer isso assim, tão na cara, mas usamos essa abordagem para ajudar o outro a encarar seus próprios obstáculos internos, suas bolhas, cegueiras e posicionamentos, que podem ser transformados e independem dos acontecimentos externos.
Olhando menos para trás, treinamos uma arte apreciada pelo escritor Jorge Luis Borges: o olvido (esquecimento). Que o cantor Roberto Carlos me perdoe, mas os detalhes são só isso mesmo: pequenos.
* Publicado originalmente na revista Vida Simples (coluna “Quarta pessoa” da edição de setembro 2014).
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.