Há mais de quatro meses atrás me dei o presente que eu sempre quis: uma longa viagem pela América Latina.
Estava sem muito dinheiro e sabia que financiar uma aventura como esta envolveria gastos consideráveis. Com minhas economias, decidi, então, comprar o equipamento básico: mochila, barraca e saco de dormir.
Abandonei o apartamento onde eu morava e troquei a poeira das estantes da biblioteca onde eu trabalhava pela poeira das estradas. No dia seguinte, estava no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, pedindo carona. A Cidade Maravilhosa iria ficar para trás.
Minha primeira carona foi com alguém chamado Raimundo, moço simpático que jurava ter batido uma bola com Romário e me levou até a cidade de Mangaratiba. A segunda carona viria de uma senhora com certas tendências nazistas e interessada em estudar o sufismo (coisa que nem sabia o que existia!). Lembro-me também do Francisco e do Tiago, dois personagens meio hipongas do litoral paulista que me ofereceram comida e suco de uva (obrigado aí, pessoal).
A partir daí, a lista de caronas só fez aumentar.
Quilômetros ficavam para trás no escaldante verão brasileiro quando percebi coisas nas estradas que antes não atingiam minhas retinas. Famílias e caminhoneiros já me conheciam nas regiões onde eu passava e, de seus volantes, me faziam sinais ininteligíveis.
Praias, postos de gasolina, campos de futebol, estacionamentos e jardins de pessoas estranhas se tornavam lugares cada vez mais seguros e aconchegantes para passar as noites.
Após quatro meses, eu havia cruzado todo o sudeste brasileiro, o Uruguai e a toda a Argentina sem pagar um centavo com hospedagem ou transporte público que ultrapassasse os R$ 5,00. Aliás, peguei somente três ônibus durante a viagem toda.
Quando cheguei a Ushuaia, no sul argentino, fiz uma trilha de três dias e enfrentei uma nevasca incrível. Como eu não tinha roupa para aguentar tal temperatura, pedi casacos e calças às pessoas que encontrei anteriormente.
Na Bolívia, após atravessar o Cañon Del Inca na raça e sem precisar de guia nenhum, acabei escutando ao final que tal façanha não era coisa de “gente normal”.
Quem é normal? Aliás, está aí. Em toda a viagem, dependi exclusivamente de uma coisa: gente.
Eram as pessoas que me levavam em seus carros e me davam comida a troco de uma boa conversa.
Quando contava minha história, algumas me abrigavam em suas casas por um ou dois dias. Fui gratuitamente hospedado nas casas de pessoas que eu nunca havia visto, aprendi a andar de bicicleta e a falar um espanhol enrolado (deixei o Cueca-Cuela de lado, finalmente).
Peguei caronas em caminhões que atravessavam a Patagônia em três dias e outros que me levavam por um quilômetro apenas.
Vi paisagens milenares que mudavam a cada passo. Comi e bebi coisas que eu não imaginava existir. Acabei por me especializar sobre o conflito nas Ilhas Malvinas e fui entrevistado quatro vezes por rádios e emissoras de televisão locais. O mais importante: fiz inúmeras amizades com os nossos vizinhos latinos e comecei a compreender suas formas de viver.
Circunscrito à minha visão ocidental do mundo, pensava que pessoas na sociedade contemporânea cresciam individualistas e egoístas. Pensava que valores como a amizade, a gratidão e o amor ao próximo eram piegas e não pareciam mais se aplicar quando o interessante era acumular riquezas.
E foi aí que aprendi a grande lição: eu estava completamente enganado.
Percebo que não me presenteei apenas com uma viagem, mas com a coragem de mudar minha vida. A viagem que me conectou profundamente com um mundo latino, hispânico, brasileiro, indígena ou seja-lá-o-que-for esta parte da América que ainda está em curso, caminando. No final, é bem simples: o mundo só precisa de gente que seja gente.
Continuo pedindo carona por aqui e descobrindo quem são essas pessoas e o que fazem de suas vidas. Ainda dependo inteiramente delas e elas me mostram, a cada dia, que nossa partezinha no planeta é divinamente humana e humanamente divina.
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