Dança é coisa de homem? Quantas vezes você já ouviu dizer que não? Ou que é coisa de "viado" (como se ser gay fosse ofensa).

A discriminação de homens que dançam foi muito bem retratada no filme “Billy Elliot” (2000) que conta a história de um menino de 11 anos e sua luta dentro de sua própria casa diante da sua paixão pela dança. Vencendo os obstáculos com ajuda de sua professora de balé, Billy tornou-se um excelente bailarino.

 

Atualmente, muito tem se falado sobre 'masculinidade tóxica', e sobre as caixas com padrões pré-estabelecidos do que é ou não adequado aos homens. Tudo ditado por uma sociedade antiga e patriarcal. O que é esperado dos homens é facilmente resumido em frases como “homens não choram” ou “isso não é coisa de homem”.

Existem muitos movimentos que contribuem com informação e promovem discernimento para a queda de alguns preconceitos que há gerações sobrevivem na humanidade.

Um tour pela história da dança

Quando olhamos para a história da dança, vemos os homens como protagonistas dessa atividade que, nos dias atuais, ainda é julgada como “coisa de viado” (e quem a julga claramente coloca a homossexualidade num lugar pejorativo).

A dança está presente na vida do ser humano desde a pré-história. Não é possível saber o que veio antes: a música ou a dança. O fato é que naquele tempo, a dança cumpria uma função social básica:  a comunicação.

Comunicar-se com o divino nos rituais ao deus sol, deusa lua, diante dos fenômenos naturais como a chuva; comunicar-se com outras tribos; além de ser praticada como uma forma de manifestação de agradecimento (pela fertilidade da terra, pela colheita, pela recepção, por uma união, aliança…).

No Egito, alguns bons séculos depois, a dança foi organizada e passou a fazer parte de eventos como funerais, nascimentos, preparações para guerra e ainda se fazia presente nos rituais religiosos.

Na Grécia antiga a dança ganhou uma extensão do que era o belo. Passou a fazer parte das disciplinas das artes, simbolizando a harmonia universal entre o divino e a beleza. Naquela época, a dança fazia parte das disciplinas da educação, estando lado a lado com a filosofia e as ciências. 

Veja que, até este momento, a dança era universal. E os homens ocupavam lugares de protagonistas. 

Em outras civilizações antigas, a dança também foi uma importante forma de expressão cultural. Citando exemplos temos as culturas africanas, astecas e maias.

Índios brasileiros da etnia Pataxó durante ritual de dança. Fonte: BrasilEscola.com

Já para os chineses, os movimentos da dança estão intimamente ligados às artes marciais (que nada mais são que sequências coreografadas e ritmadas performadas principalmente por homens). Dançar também era muito comuns na preparação e treinamentos dos soldados e samurais para combaterem nas guerras contra os inimigos da nação.

Na época medieval, os grandes salões de bailes eram frequentados por homens nobres com suas espadas embainhadas. Ali, dentro dos castelos, em meio à dança que os homens concretizavam negócios, arranjavam casamentos para suas filhas entre outros trâmites sociais.

E foi, por ironia do destino (ou não), um homem bailarino, francês apaixonado pela dança, Rei Luís XIV, dentro do reinado mais longevo da Europa e da humanidade, no século XVII, que separou a dança em dois momentos: 1) socialização e 2) apresentação, criando, assim, o que até hoje conhecemos como o Ballet.

Inclusive, no “Ballet Noturno da Realeza”, Luís XIV apareceu no papel da luz que brilha, iluminando e fertilizando a terra, passando, assim, a ser conhecido por seu codinome, “Rei do Sol”.

Luis XIV vestido de rei sol

Por cerca de 200 anos, as peças escritas para Ballet eram exclusivamente masculinas, inclusive tendo homens performando papéis femininos.

Somente 1.681, dentro da mais antiga companhia profissional de dança do mundo, fundada pelo Rei Sol, a Académie Royale de Musique, que Mademoiselle de LaFontaine se torna a primeira mulher a dançar profissionalmente. A partir do século XIX as mulheres começam a se destacar no Ballet.

Com toda essa história protagonizada por homens desde a pré-história até meados do século XVII, não faz sentido definirmos a dança (qualquer que seja) como algo que não seja masculino, ou atrelar a dança a orientação sexual.

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De onde veio a crença de que homens não dançam?

Durante a expansão do catolicismo por toda a Europa, a dança deixa de ser parte dos rituais sagrados, como foi em sua origem. A moral da religião se torna protagonistas dos rituais religiosos e coloca o corpo como fonte de pecado humano, precisando, assim ser controlado e oprimido.

Como manifestação corporal, a dança, portanto, foi suprimida e proibida pelos líderes e frequentadores da igreja.

Além do contexto religioso, um fator técnico permitiu maior acesso às mulheres, principalmente ao Ballet. Com o aper­fei­ço­a­mento das dan­ças nas pon­tas dos pés, técnica reconhecida para dar um ar de leveza aos bailarinos e bailarinas, as mulhe­res passaram a ficar mais popu­la­res do que os homens.

Um outro ponto que vale a pena refletir, talvez mais recente e camuflado entre os homens, seja a tradicional de que “homem que é homem não erra”. Em um ambiente e em uma disciplina que os homens contemporâneos não dominam, é preciso mais do que coragem para assumir que não sabe, e o mito de que isso nos tira da condição de homem.

O que podemos ganhar ao mergulhar, nem que seja só a pontinha do pé, no mundo da dança?

Quando aprofundamos o estudo sobre os benefícios das danças para todos (homens e mulheres), não vejo como razoável de não respeitar minimamente os homens que fazem dessa prática sua profissão ou seu hobby.

São muitos os benefícios proporcionados pela dança. Através dela, podemos estar em contato com nossos sentimentos e emoções, aprendendo como expressá-los através do nosso corpo; aprendemos a manter uma conexão consigo mesmo, olhando para si e ela também contribui para que estejamos concentrados no momento presente.

Além disso, os exercícios envolvidos nos dão maior consciência corporal, corrigem e melhoram nossa postura, desenvolvem nossa delicadeza estimulando mais de um sentido ao mesmo tempo. Sem colocar na conta os ganhos musculares, de flexibilidade e o bem que promove para o coração e o nosso sistema respiratório.

Para os homens, o simples fato de mexer o corpo pode contribuir para a quebra da crença de que “homem que é homem tem que ser durão, inflexível”.

O mundo da dança produziu grandes homens bailarinos. Dentre eles, temos os renomados internacionais, Vaslav Nijinski, Mikhail Baryshnikov e Rudolf Nureyev. No Brasil, temos Henrique Rodovalho, Rodrigo Pederneiras, Carlinhos de Jesus e Thiago Soares, entre tantos outros.

O internacionalmente conhecido, Thiago Soares. 

Assim, temos muitos motivos para repensar todos os preconceitos acerca da profissão ou atividade escolhida e exercida por homens ou mulheres.

A sociedade interpreta as escolhas através de uma lente sexual démodé e que nunca fez sentido. A escolha da profissão não influencia a sexualidade, visto que nas diversas atividades profissionais há pessoas com diferentes orientações sexuais e isso não é (ou não deveria ser) um problema. 

Para se ter uma possibilidade profissional na dança, é preciso começar cedo e, infelizmente, o preconceito faz muitos meninos desistirem de uma carreira na área.

É preciso estancar velhos rótulos que só limitam os homens, impedindo-os de explorarem e experimentarem entregar-se à dança como forma de livre expressão do eu.

Homens podem dançar, sim, sem que isso os torne menos homens, porque dançar é vida!

A masculinidade não pode ser colocada à prova de maneira tão infantil e frágil. Pelo contrário! Encontrar-se como homem na dança, como forma de se conectar consigo mesmo, deve prevalecer!

Após ler esse texto, volto para a pergunta do começo: você acha que dança não é coisa de homem?

E ainda faço um convite para gente compartilhar aprendizados:

O que você aprendeu quando se deixou levar pelo ritmo?

Felipe Requião

Homem cis hétero, filho, amigo, irmão, marido e pai em busca do autoconhecimento e da felicidade. Adm de empresas, facilitador de grupos de homens e co-fundador do @grupo.horah.