Escrever sobre cinema é complicado. Além de existirem muitos dados e relatos sobre o assunto – e não dá pra contar tudo – também vemos opiniões e críticas muito contraditórias surgindo todos os dias acerca dos filmes, das vanguardas, da fotografia, da montagem, dos efeitos especiais, da atriz mais gostosa da vez e por aí vai.
Umas das coisas que mais me intriga é a aversão – ou até mesmo preguiça – que algumas pessoas criaram com relação ao cinema mudo ou sobre a própria história do cinema.
Ok, não somos obrigados a amar o que foi feito para uma sociedade da década de 20, mas será que não existe nenhuma curiosidade em entender de onde surgiram as ideias, os argumentos, as histórias, os personagens e mais um monte de elementos dos filmes atuais que tanto nos emocionam?
Não digo que tudo que achamos foda hoje é cópia barata de alguma coisa feita no passado. Mas é interessante entender que existe uma evolução e que as famosas referências ajudaram a gerar a riqueza artística do cinema.
Sobre isso, tomo como exemplo uma corrente cinematográfica bem popular, do fim da Primeira Guerra Mundial: o expressionismo alemão.
É muito interessante como cada sociedade responde à épocas de crise ou de desilusão. Pros alemães, o jeito foi colocar pra fora – e de uma maneira bem única – todo o conflito emocional que estava entalado na garganta.
Quando se vive em um país destruído pela guerra, sem muitos recursos para a importação de cultura, o jeito foi partir pra produção nacional. Em cima disso, os cineastas e roteiristas não tinham mais desejo ou até perspectiva de explorar a realidade, já que na época a realidade era muito cruel, cheia de desilusão, sofrimento e miséria. Em cima disso, a criação não se baseava mais no que se via propriamente dito, mas no que se sentia.
“O expressionista já não vê, mas tem “visões”. Ou seja, a realidade não é mais contemplada segundo os dados dos sentidos, mas o homem consegue tão somente projetar “visões” subjetivas e interiorizantes do Real.” –Revista ContraCampo
O termo, como já se imagina, origina-se da vanguarda artística nas artes plásticas – que foi se dissipando para a música, literatura etc – muito marcada por artistas como Edvard Munch e Franz Marc. A partir dessa inspiração surge então uma experiência cinematográfica autoral e sofisticada que explora temas como a magia, o sombrio, o macabro, a introspecção e a loucura. Reflexo de uma necessidade de expressão emocional.
Para entender melhor os fundamentos desse movimento, vale a pena prestar atenção em três pontos principais. Como um ótimo exemplo temos o Gabinete do Dr. Caligari, filme que marcou o início do expressionismo alemão no cinema.
Estratégias com relação à composição: Cenografia, fotografia e mise-en-scène
Embora causadas por diferentes fatores, como as referências pictóricas ou a limitação de recursos, todas essas experiências com a composição visavam captar “estados de alma” com base em aspectos visuais. O que passa a acontecer no visual do expressionismo é a inserção de uma série de elementos de forma a representar o inconsciente dos personagens.
Tudo é muito estilizado: maquiagem, cenários, figurinos etc. Nos filmes expressionistas, a plasticidade dos personagens e dos objetos era símbolo do drama do ambiente – fosse para expressar loucura, terror, medo – uma deformação expressiva a fim de relatar os sentimentos dos personagens que estavam vivenciando aquele momento de agonia.
Muitas vezes, a construção desses lugares deformados e fantasiosos causavam a impressão de que uma pintura expressionista havia ganhado vida. A arquitetura dos cenários, inclusive da natureza, vira um elemento narrativo forte, por conta dessa figuração dos sentimentos do personagem no momento da cena.
Esse recurso, ao longo da história do cinema, continuou sendo desenvolvido, fosse pela escolha das cores do ambiente como, por exemplo, uma cena muito violenta marcada por tons de vermelho, pela fotografia, pelo enquadramento etc.
Inclusive, pela falta de grana na Alemanha pós-guerra, muitas locações eram pintadas com tinta branca e preta afim de criar um jogo de luzes e sombras. Esse artifício funcionava para reforçar a “deformação expressiva” da cena, embora a grande responsável pela exploração do contraste claro-escuro fosse a fotografia.
Com um jogo contrastante de luz e sombra na iluminação, o expressionismo também consegue intensificar a narrativa, deixando bem clara a diferença entre momentos alegres – super iluminados, sem muito contraste – e momentos assustadores, sombrios, misteriosos ou depressivos – luz e sombra tão distintos que muitas vezes causavam uma sensação de deformidade na visão.
Uma das experimentações mais emblemáticas na fotografia do expressionismo alemão foi o uso das sombras como elementos narrativos. A experimentação na cena de Nosferatu, onde o vampiro ataca o coração da pobre Ellen. É um marco.
Nela, além de criar medo no espectador com a aproximação do vampiro – marcada pela sua sombra subindo a escadaria da casa – ocorre a exploração da fantasia e do sobrenatural quando a sombra da mão do vampiro faz a função de atacar o coração de Ellen. Mesmo sem sangue derramado, a cena conseguiu ser aterrorizante para a época.
Temática Recorrente: situações dramáticas e tipos de personagens
Resumindo em duas palavras: drama fantástico.
Os temas dos filmes, em sua maioria, se ligavam à literatura fantástica e romântica. Havia uma recorrente preferência por um mundo imaginário e romântico – não o de amorzinho, o movimento artístico mesmo. Até então, a exploração da fantasia no cinema se só se destacava com as obras de Georges Méliès, como em A viagem à Lua.
Percebe-se que, nos filmes expressionistas, há uma centralização nos conflitos internos de um personagem e a presença de vilões fantásticos, destituídos de bondade e isolados nas suas egotrips de poder e crueldade. Por conta desses personagens caricatos e emocionalmente instáveis – muitas vezes reforçados pela presença de jogos de espelhos, magia e outros elementos fantásticos – havia grande gosto por retratar a insanidade no seu mais puro estado – o que alguns críticos chamam de “desdobramento demoníaco”.
Além de psicopatas, o expressionismo alemão lidava com monstros, criaturas deformadas e ameaçadoras. Os vilões caricatos e maniqueístas dominavam essa vertente.
Será que qualquer semelhança com os personagens de alguns filmes de hoje é mera coincidência?
“O homem que ri”, filme pós-expressionista, pode ter sido um dos primeiros a fazer uso da deformação do riso em algo macabro. Nele, por ordem de um rei cruel, um jovem é desfigurado num perpétuo riso forçado, o que o torna uma atração de circo, o famoso palhaço.
A temática dramática normalmente envolvia o surgimento de algum desses vilões demoníacos que torturavam a mente e até mesmo o corpo de personagens cujas vidas eram harmoniosas. O que os levava à finais que envolviam loucura, sofrimento e morte.
Estrutura Narrativa: modo de contar as histórias e de organizar os fatos
Uma vez eu li em um livro essa explicação para a estrutura expressionista:
“Narrativas oblíquas que encorajam a especulação e frustram qualquer tentativa de explicação definitiva.” (Fonte)
Ou seja, as histórias deixavam você tenso pra caralho, sem saber o que pode acontecer pois o envolvimento emocional é muito grande. Assim, a ordem dos acontecimentos se torna ideal para criar esse tipo de envolvimento. Resumindo: surge um formato de organização dos fatos que antecede o suspense.
O suspense surgiu a partir da exploração de diversas narrativas, sendo uma delas o expressionismo alemão. Um exemplo é o filme “M – O vampiro de Dusseldorf“. Neste filme, o espectador descobre quem é o assassino da história antes dos próprios personagens, gerando uma forte tensão ao longo da história pois vemos o assassino se aproximando de suas próximas vítimas e fugindo da polícia, o que gera a famosa sensação da “bomba relógio embaixo da mesa de jantar” usada por Hitchcock em várias de suas obras, como em “O festim diabólico“.
“Se explodirmos repentinamente uma bomba numa sala com dez pessoas, a emoção durará dez segundos. Mas anuncie que uma bomba irá explodir e o suspense durará até o fim.” –Alfred Hitchcock
Um marco importante nesse momento da construção da história foi a abolição de muitos letreiros explicativos nos filmes. Abrindo espaço para interpretação subjetiva do espectador e para gerar tensão ao longo da narrativa.
Percebe-se a presença da narrativa moldura – uma história inserida em outra – normalmente usada por relatos, com um personagem contando sua história trágica ao outro. Normalmente ela é usada no expressionismo para justificar o caráter fantasioso das histórias. É a velha história de pescador, onde o contador pode estar exagerando alguns fatos por ser sua visão subjetiva da história. Filmes como “Peixe Grande” usam desse artifício.
O expressionismo alemão, embora vigente por pouco tempo, se tornou uma fonte muito vasta para o que depois seriam os filmes do cinema noir, e depois para gêneros como suspense, terror, fantasia, entre outros. É interessante ver alguns filmes e já começar a perceber sua mutação em novos estilos, personagens e linguagens.
Deixo aqui uma breve lista com os filmes mais marcantes do expressionismo alemão e também alguns pós-expressionistas:
- Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1912, Alemanha, 78 min.). Direção: Robert Weiner
- Golem(Der Golem, 1920, Alemanha, 98 min.) Direção: Paul Wegener
- Nosferatu(Nosferatu, 1922, Alemanha, 94 min.) Direção: F.W. Murnau
- A Última Gargalhada (Der Letzte Mann, 1924, Alemanha, 91 min.) Direção: F. W. Murnau
- Fausto(Eine Deutsche Volkssage, 1926, Alemanha, 116 min.) Direção: F.W.Murnau
- Dr. Mabuse: O jogador(Dr. Mabuse: der Spieler, 1922, Alemanha, 120 min.) Direção: Fritz Lang
- Dr. Mabuse: O Inferno Do Crime(Dr.Mabuse: Ein Bild der Zeit, 1922, Alemanha, 109 min.) Direção: Fritz Lang
- Metrópolis (Metropolis, 1926, Alemanha, 119 min.) Direção: Fritz Lang
- M – O Vampiro de Dusseldorf (M, 1931, Alemanha, 117 min.) Direção: Fritz Lang
- Os Mil Olhos do Dr. Mabuse (Die 1000 Augen des Dr. Mabuse, 1960, Alemanha Ocidental/França/Itália, 103 min.) Direção: Fritz Lang
- Gabinete das Figuras de Cera (Das Wachsfigurenkabinett, 1924, Alemanha, 65 min.) Direção: Paul Leni, Leo Birinsky
- Homem que ri (The Man Who Laughs, 1928, EUA, 110 min.) Direção: Paul Leni
- Estudante De Praga (Der Student Von Prag, 1926, Alemanha, 91 min.) Direção: Henrik Galeen
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.