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“Há mil anos, vossos heroicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao poder do Estado Único (…) Espera-se submeter ao jugo benéfico da razão os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas, que possivelmente ainda se encontrem em estado selvagem de liberdade. Se não compreenderem que levamos a eles a felicidade matematicamente infalível, o nosso dever é obrigá-los a serem felizes”.

Essas são algumas das frases que abrem o romance “Nós”. O livro, que se passa num futuro totalitário, por volta do século 30, é marco fundador de um gênero, a ficção distópica — e inspirou os clássicos “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell.

“Nós”, escrito pelo russo Ievguêni Zamiátin em 1923, foi censurado na União Soviética (onde só foi editado em 1988) e acabou sendo publicado nos Estados Unidos em 1924. No Brasil, a obra sempre foi difícil de achar. Em 1964, foi editada pela GRD, numa tradução do francês; em 1983, a editora Anima fez sua versão a partir do inglês. Em 2004, então, “Nós” foi editado pela Alfa-Omega, traduzido pela primeira vez direto do russo por Clarice Lima Averina.

Agora, em 2017, o livro ganha uma caprichada nova edição, pela editora Aleph, com tradução do russo feita por Gabriela Soares. O volume inclui ainda um ensaio sobre a obra escrito em 1946 por George Orwell e uma carta escrita em 1931 por Zamiátin para Josef Stálin, então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Ainda em 2017, a editora 34 também lança o livro, com tradução de Francisco Araújo.

A obra é escrita em primeira pessoa: o narrador D-503 anota num diário suas impressões sobre a vida sob o jugo do Estado Único, onde não há “eu”, não há individualidade, há apenas “nós”. D-503 é engenheiro e trabalha na construção da Integral, uma nave que vai levar a mensagem que abre o livro e este texto. D-503 flerta com rebeldes que operam dentro do sistema rígido e conta, em capítulos curtos, como é a vida totalmente cerceada, num lugar em que liberdade é crime.

O interesse renovado por “Nós” e as novas edições em português aparecem no momento em que a ficção distópica ocupa o topo das listas de best-sellers pelo mundo. Uma semana depois da posse de Donald Trump, em 2017, o livro “1984”, publicado em 1949, era o mais vendido da loja da Amazon nos Estados Unidos.

Uma semana depois da posse de Donald Trump, em 2017, o livro "1984" era o mais vendido da loja da Amazon nos Estados Unidos. Foto: Reprodução/Companhia das Letras

Os surtos de interesse pela ficção distópica não são exatamente uma novidade: ressurgem em momentos políticos nos quais cresce o medo do autoritarismo — houve outro pico de vendas de “1984” em 2013, quando Edward Snowden revelou detalhes sobre a vigilância exercida pelo governo americano. Isso porque, embora a ficção distópica se passe no futuro, ela é, na verdade, uma crítica ácida do agora, uma caricatura do presente projetada num porvir distante.

E quando a realidade apresenta situações extremas, fica difícil distinguir o que é fato do que não é — como mostra um quiz publicado pelo Nexo em dezembro de 2016.

Utopia vs Distopia

A ficção distópica, que tem “Nós” como exemplar, deriva da noção de distopia, que opõe-se à utopia. O termo “utopia” acabou ganhando lugar na cultura moderna do Ocidente associado à ideia de uma civilização ideal, harmoniosa, igualitária — e inalcançável.

A palavra é na verdade um neologismo que vem do grego e quer dizer o não (u) lugar (topos). Ou seja, a utopia é um lugar inexistente. A palavra foi cunhada pelo escritor inglês Thomas More, que em 1516 publicou o livro “Utopia”, sobre uma ilha imaginária no oceano Atlântico. A obra, escrita em latim, é produto de sua circunstância histórica; a época das Grandes Navegações e a descoberto do “Novo Mundo”, a América.

“Utopia” mescla elementos de realidade à ficção ao narrar as viagens de Rafael Hitlodeu, um navegante português que teria sido deixado pelo viajante Américo Vespúcio, com mais outros 23 homens, no que hoje é Cabo Frio, no Brasil, em 1507. Rafael então zarpa sozinho pelo oceano e chega a Utopia, uma ilha onde não há propriedade privada, os hospitais são gratuitos, é permitida a eutanásia, o divórcio e o casamento de padres e onde há uma convivência plural multirreligiosa.

A influência da ficção criada por Thomas More se estendeu pelos séculos até os dias de hoje. Outros livros como “Nova Atlântida” (1634), com a ilha imaginária de Francis Bacon, ou “Cândido” (1759) e seu Estado ideal de Eldorado, de Voltaire, desenvolvem versões de um não lugar ideal, uma utopia. Mas é principalmente na política que o conceito de utopia ganha força.

No começo do século 19, surgem na Europa as primeiras figurações do socialismo, que imaginam um futuro igualitário, comunitário e sem propriedade privada. São essas ideias que identificam os chamados socialistas utópicos, como o escritor e político francês Saint-Simon, que enxergou na razão científica da nascente sociedade industrial oitocentista o caminho para acabar com privilégios arcaicos e chegar à igualdade.

Na mesma época, o britânico Robert Owen faz experiências de cooperativismo com operários em New Lanmark, na Escócia, e prega o bem-estar dos trabalhadores — além de fundar uma comuna nos EUA. Já na França, Charles Fourier propõe uma versão ainda mais radical de sociedade: os falanstérios, unidades produtivas coletivistas projetadas para garantir a autossuficiência material e espiritual das comunidades, que chegaram a ser testados nos EUA

No meio do século 19, então, inspirados entre outras coisas por esses pensadores, Karl Marx e Frederich Engels formatam a ideia do comunismo, elaborando em termos filosóficos e práticos a ideia de igualdade e do fim da propriedade privada, contida já na “Utopia” de Thomas More.

Distopia no horizonte: o mundo em 1924

Zamiátin escreve “Nós” em 1923, na Rússia. Seis anos antes, o país havia feito a revolução socialista que depôs o czar e instaurou a ditadura do proletariado, representado pelos sovietes. Vladimir Lênin, líder da revolução, morre em 1924 e Josef Stálin se projeta como seu sucessor. A utopia que havia inspirado os revolucionários já começa a dar sinais de que poderia se converter em distopia.

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Zamiátin era autor de diversos artigos, livros e peças. Apoiador da revolução de 1917, na época em que escreve “Nós” já começa a se indispor com o regime. Por isso o livro teve a publicação recusada, era “ideologicamente indesejável”, como escreveu George Orwell na sua resenha da obra.

“Nós” não tem nenhuma referência específica à União Soviética daquele período. Mas descreve uma sociedade em que o Estado Único é absoluto, o Benfeitor é eleito sem oposição e por unanimidade todos os anos, as atividades dos cidadãos são reguladas pela Tábua de Horas, a polícia política, os Guardiões, vigia tudo. Todos têm que ser felizes. A burocracia domina a vida e a arte: o “maior monumento literário legado pelos antigos”, como escreve D-503, o narrador, é o “Horário das Estradas de Ferro”.

Traços da sociedade descrita por Zamiátin funcionam como hipérboles de um sistema que já se insinuava em 1924, depois da Primeira Guerra Mundial: o sistema totalitário, em que a individualidade é anulada e prevalece o poder do Estado.

O autor russo entrevê nas formas de organização social do começo do século 20, observando a destruição das guerras e a administração racional da produção criada pelo engenheiro americano Frederick Taylor (citado como grande mestre do passado no mundo de “Nós”), o estrago que a perversão dos ideais utópicos poderia causar. Ele ataca, assim, com sua sátira ficcional, a civilização industrial como um todo.

A Alemanha nazista só ganharia forma na década de 1930, com a ascensão de Hitler, mesmo momento em que expurgos e o culto à personalidade de Stálin viram prática comum na  União Soviética. Ou seja, Zamiátin, na exagerada caricatura do mundo que vivia entre 1923 e 1924, no entre-guerras, acaba retratando uma sociedade que se materializou apenas uma década depois.

Em 1931, Zamiátin escreve para Stálin uma carta que está no fim do volume editado pela Aleph. Ele pede para deixar a União Soviética por não poder mais exercer seu trabalho — suas obras eram todas censuradas. Em um trecho, mostra sua inquietação política com o regime, então já muito mais próximo da realidade que havia descrito em “Nós”:

“Eu sei que tenho hábito altamente inconveniente de dizer o que eu considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser conveniente no momento. Em particular, nunca disfarcei minha atitude em relação ao servilismo literário, à bajulação e mudanças de cor camaleônicas: eu senti, e ainda sinto, que isso é igualmente degradante tanto para o escritor quanto para a Revolução”

Zamiátin em carta a Stálin – p. 325, “Nós”, Ed. Aleph, 2017

Influências: De H.G. Wells a ‘Black Mirror’

“Nós” é considerado marco fundador da ficção distópica por ter influenciado diretamente dois livros que se tornaram muito populares depois: “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell. Mas a obra de Zamiátin não é a primeira a apresentar um futuro distante e sombrio para, de alguma forma, criticar a sociedade do presente.

Cena do último episódio da temporada de estreia de Black Mirror. Na foto, o ator britânico Tobby Kebbell, que interpreta o advogado Liam Foxwell. Foto: Reprodução/Netflix.

Em 1895, foi publicada “A Máquina do Tempo”, do escritor inglês H.G. Wells. A obra é um exemplo pioneiro de história com um futuro ruim: imagina o ano de 802.701 como um pesadelo onde coexistem duas castas sociais inimigas. Em 1908, um outro marco da literatura é publicado: o livro “O Tacão de Ferro”, do escritor americano Jack London.

Ele descreve um mundo futuro em que os Estados Unidos são dominados por uma oligarquia que implementa um sistema altamente repressor para conter os operários. Zamiátin era leitor ávido, editava revistas e traduzia textos do inglês — foi o que fez ao verter obras de Wells e de London. Já em 1946, quando Orwell faz sua resenha sobre “Nós” ele identifica o parentesco do livro de Aldous Huxley com o do autor russo. Em “Nós”, os cidadãos são conhecidos por números, não por nomes; vivem em casas de vidro, para poderem ser vigiados; vestem a mesma roupa, uniformes azuis, os “unifs”; comem comida sintética; não podem sonhar e, para fazer sexo, têm que apresentar um bilhete rosa dado pelo governo para o parceiro.

Orwell considera “Nós” superior a “Admirável Mundo Novo” por ele trazer uma visão mais profunda do que há de errado com o totalitarismo. Escreve Orwell: “Zamiátin tinha razão em desprezar os regimes políticos sob os quais viveu, mas seu livro não é meramente uma expressão de descontentamento. Com efeito, é um estudo da Máquina, o gênio que o homem impensadamente libertou da lâmpada e não conseguiu colocar de volta.”

Três anos depois da resenha, o autor inglês publicou “1984”, sua versão de ficção distópica. Outros exemplos de literatura no gênero que vieram na sequência são “Farenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, e “A Laranja Mecânica” (1962), de Anthony Burgess.

A atualidade da obra de Zamiátin em 2017 se prova ainda com o sucesso de séries como “Black Mirror”, produção inglesa para a televisão distribuída pela Netflix desde o fim de 2011. A série retrata em episódios num futuro não tão distante traços do mundo contemporâneo que podem se revelar sombrios.

Em “Nós”, Zamiátin descreve por meio do narrador D-503 uma sociedade em que valores considerados positivos como a higiene, a precisão, a disciplina, a racionalidade são exacerbados de tal forma, nos hábitos do cotidiano, que eles se mostram altamente repressivos. É algo parecido com o que acontece em “Black Mirror”, que mostra como a tecnologia, a princípio desenvolvida para o bem-estar humano, pode degringolar em terror.

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