“Eu desisto!”

Não sei de onde tirei forças para falar aquilo. O guia me olhou assustado e disse que faltava pouco para chegarmos ao topo. Não dei ouvidos. Eu estava fraco, não só física, mas mentalmente. Além das dores no corpo inteiro, depois de caminhar por mais de 8 horas, minha boca estava rachada, fazia -13°C, eu recém havia percebido que meus dedos dos pés estavam em carne viva e minha mão esquerda estava congelando. Eu estava assustado. Com medo de morrer. Sentia frustração, raiva e arrependimento por ter aceitado embarcar naquela aventura.

Quando finalmente o chileno acreditou que eu não tinha mais condições de subir, nos viramos para começar a descida e ele foi chamado no rádio pelo guia que ficava mais abaixo: “Juan, fica onde você está! Uma das garotas que tinha ficado aqui comigo, no grupo dos que desistiram, está subindo sozinha, apesar do meu aviso para ela não continuar. Consegue vê-la daí?”. Ele respondeu que sim e fez sinais com os braços para ela vir até nós. Trinta minutos se passaram até ela chegar onde estávamos. “Prazer, meu nome é Corinne e eu quero subir!”, disse em inglês.

Eu, que estava atirado no gelo aquele tempo todo, tentando descansar, olhei para Juan perguntando o que faríamos e ele solta a seguinte frase: “Nós vamos subir! Se tivesse outro guia aqui, eu desceria com você, mas agora ela tem a preferência. Não posso deixá-la subir sozinha, ela morreria. E se eu deixá-lo aqui ou você tentar voltar sem mim, quem morre é você! Não há escolhas, ou você sobe ou você sobe”.

Olhei em volta e tudo estava branco. Uma névoa havia tomado conta da montanha naquele momento e não se via mais nada a partir de cinco metros de distância. Descer sozinho seria mesmo suicídio e ficar ali parado seria a certeza de congelar em poucos minutos. Foi quando me perguntei: “O que eu estou fazendo aqui?!”.

Essa foto foi tirada muito mais abaixo de onde nós já estávamos, mas dá pra ter uma ideia.

Eu não quero ir

Chegamos a Pucón, no sul do Chile, na véspera. Meu irmão, sua namorada e eu nos hospedamos no hostel de um neozelandês muito simpático chamado James. Depois de ter atravessado os Andes, andado por Santiago e cruzado vinhedos e desertos, eles estavam procurando mais aventura e foi então que minha cunhada veio com a ideia: "Vamos escalar um vulcão?".

Eu só podia dizer não. Interação total com a natureza não fazia o perfil deles; eu havia me curado há apenas 7 dias de uma grave lesão no tornozelo; e o pior, estava chovendo. Ela não desistiu da ideia e nos disse que haveria uma reunião sobre a aventura naquela mesma noite. “Será só para escutá-los. Ok?”. Fazer o quê? “Ok.”

Os caras chegaram e deram todos os detalhes. Haveria uma "janela" de tempo bom, todo o equipamento especial seria fornecido e se houvesse qualquer mudança, eles nos avisariam e a aventura seria cancelada. Eles também avisaram que teríamos 12 horas para completar o trajeto e pediram para quem não se achasse apto, dizer agora. Pagamos cerca de R$ 250 cada sem nenhuma ideia de onde estávamos nos metendo.

Perguntamos para outros hóspedes e eles nos disseram que era tranquilo. Acontece que as subidas em geral são feitas no vulcão Villarrica, dessa vez, porém, havia um problema: ele estava ativo!

Você não leu errado. Se o vulcão entrasse em atividade mais intensa, a cidade toda deveria ser evacuada em minutos. Subir lá estava fora de cogitação. O nosso vulcão se tratava de um outro a cerca de 45 minutos de distância dali: o Quetrupillan.

Aquele dia foi loco

Acordamos às 3h30, tomamos café e logo depois embarcamos em cinco vans que nos levaram ao ponto de partida. Éramos 36 pessoas: 6 guias e 30 aventureiros. A maioria, uma garotada por volta dos seus 20 e poucos anos além de nós três com 38, 34 e 33. Às 5h da manhã começou a aventura que mudaria minha vida pra sempre.

Uma foto de quando ainda havia motivos pra sorrir: eu, o mais velho, minha cunhada, a mais nova, e meu irmão.

Apesar de ser um pouco mais baixo que o Villarrica, o Quetrupillan era mais desafiador. Para se chegar até sua base deveríamos atravessar uma densa floresta, num terreno acidentado. Foram quase três horas entre subidas e descidas escorregadias e começávamos a sentir os primeiros efeitos do cansaço.

Chegamos lá por volta das 8h da manhã. O sol já nos esquentava quando começamos a ziguezaguear pela montanha. Com cerca de cinco horas de caminhada percebi que meu irmão e minha cunhada estavam exaustos e aos poucos eles foram ficando para trás. Eu seguia com o grupo da frente e antes do meio dia já havia perdido contato visual com eles.

Nossa última clareira, comida e conversa como grupo, pouco antes do fim da floresta.

Assim que entramos na parte do gelo, fiquei sabendo que os dois tinham desistido de subir. Seguimos num grupo de 25 aventureiros e 5 guias. Não iria demorar muito para esse time ficar com dois a menos, Juan e eu.

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Já havia se passado sete horas e eu sentia muitas dores nas pernas. Meu corpo dava sinais de esgotamento, mas minha teimosia não queria enxergar isso. Só que não consegui acompanhar o ritmo da garotada e fui ficando pra trás. Aos poucos, o grupo mais adiantado sumiu montanha acima e me vi no meio do nada, com meu guia “particular”.

Quando ainda éramos um grupo e os jovens começaram a me deixar pra trás.

Conflitos internos

A frustração de começar a perceber que não iria completar aquilo que tinha me proposto começava a me encher de raiva. As dores tornavam o quadro ainda mais dramático e a gota d’água foi quando percebi que minha mão estava congelando. Depois de ter pensado três vezes em desistir nas últimas duas horas, tirei forças não sei de onde e disse que queria parar!

Foi então que uma americana de 19 anos aparece vestindo só uma camiseta de mangas curtas, uma calça de aventura, botas e a mochila emprestada pela empresa. "Você não sente frio, sua doida?" – perguntei sem muita educação.

Juan, apavorado, a obrigou a colocar jaqueta, luvas, capacete e repetiu o treinamento que nos mostrava como usar a marreta de escalada. Aquilo serviria para nos fazer parar caso deslizássemos montanha abaixo. Após isso, seguimos. Mas bastaram alguns passos para perceber que aquela meia hora não tinha adiantado nada. Eu continuava exausto e não tinha outra opção que não fosse continuar. Juan começou a me fazer perguntas e percebi que ele estava me enrolando, mas aquilo acabou gerando uma boa distração para todos nós.

Cerca de uma hora depois, Corinne grita: “Chegamos! Eles estão ali!”. Eu não acreditei. Mal tinha forças pra levantar a cabeça. Mais alguns metros e lá estava eu, no topo daquele vulcão. O que parecia impossível se concretizou. Finquei minha ferramenta no chão, joguei a mochila sobre as pedras e comecei a chorar compulsivamente ao mesmo tempo em que o céu se abria.

Sequei as lágrimas e fui capaz de tirar uma foto. Aquele outro vulcão, ao fundo, já é na Argentina.

Foram seis minutos em que as nuvens se dissiparam e eu pude ver o vulcão Lanin, lá na Argentina, de um lado, o Villarrica soltando fumaça do outro lado e perceber que minhas dores todas haviam passado, só restava uma sensação inédita de realização e felicidade plenas.

Rapidamente o guia principal nos avisou para arrumarmos tudo e partimos no caminho de volta. Uma tempestade estava chegando. Três horas depois me atirei ao lado do meu irmão e da minha cunhada numa clareira ao pé do vulcão, são e salvo. Demoraria ainda alguns dias para conseguirmos caminhar direito, mas eu me sentia melhor do que nunca.

"O que não te mata…"

Quando entramos numa aventura como esta, imaginamos que o maior desafio é físico. Engano. O maior desafio é psicológico. A força que recuperei lá em cima me fez repensar toda a minha vida. Enquanto observava ao longe a Cordilheira dos Andes, mais longe eu enxergava dentro de mim. Eu só pensava em uma coisa: quero ter esta sensação todos os dias da minha vida.

Chegamos ao hostel já pela noite e eu me sentia muito diferente. Curtimos os 10 dias que ainda restava de viagem e quando voltei a Porto Alegre, retomei minha rotina na empresa onde trabalhava como gerente de marketing. Eu não podia me sentir mais desencaixado. Nada mais daquilo fazia sentido. Primeiro pensei que fosse a ressaca pós-férias. Mas aquilo durou tanto tempo que não aguentei. Avisei que ia pedir demissão.

Exatos 12 dias depois, estava livre. No início de agosto parti em uma volta ao mundo que durou 10 meses e que será retomada agora em dezembro. Aluguei meu apartamento, reduzi minhas coisas a uma mochila de 45 litros, peguei meu skate e andei por três continentes. Fiquei hospedado de couchsurfing, trabalhei em hostels ou restaurantes por aí, conheci muita gente, fiz amigos de verdade, aprendi muito sobre línguas, culturas e pessoas. E tudo isso porque um dia subi num vulcão que eu nem queria.

Mecenas: BMW Motorrad

Aventuras tem o poder de transformar.

Para a BMW Motorrad, cada viagem ou experiência para o desconhecido nos fazem pessoas novas. Conhecendo lugares, fazemos amigos e passamos por obstáculos. Por isso, a BMW Motorrad será mecenas desse canal de aventuras no PapodeHomem.

Queremos ouvir e contar histórias reais de pessoas que viveram façanhas transformadoras como o Fabio, que escalou um vulcão mesmo pensando em desistir quatro vezes pelo caminho.

Conte sua história aqui ou nos comentários e ela poderá ser o próximo artigo da série. Se você conhece alguém com alguma proeza digna de ser recontada, traga pra gente também. 

Conheça mais a linha GS da BMW e entenda o verdadeiro espírito de aventura.

Fábio Collares

Viajante em tempo integral e jornalista não praticante. Vivo com o dinheiro do aluguel do apartamento que não uso mais, corto meu próprio cabelo, amo Rock & Roll e tenho convites para ficar o tempo que quiser em dezenas de países pelo mundo. Escrevo minhas aventuras na página do Facebook <a>"Tah