confiança
s.f.
derivação do latim confidare/confidere, que tem origem em co(n) (junto) + fides (fé, lealdade)
1. crença na probidade moral, na sinceridade afetiva, nas qualidades profissionais etc., de outrem, que torna incompatível imaginar um deslize, uma traição, uma demonstração de incompetência de sua parte; crédito, fé
2. crença de que algo não falhará, é bem-feito ou forte o suficiente para cumprir sua função
3. força interior; segurança, firmeza
4. crença ou certeza de que suas expectativas serão concretizadas; esperança, otimismo
5. sentimento de respeito, concórdia, segurança mútua
6. comportamento não facultado a alguém de posição considerada inferior, ou sem intimidade suficiente para assim se comportar; atrevimento, insolência
Não tenho mulher, mas se tivesse, ela confiaria em mim. Tive alguns chefes e todos eles puderam confiar em mim. Minha mãe certamente confia em mim. Um sequestrador com uma Glock apontada para a minha cabeça e me dizendo para não bancar o herói poderia confiar em mim. Tenho alguns amigos e todos eles, acho, confiam em mim.
Quanto a mim, olho com desconfiança a confiança que me é reservada. Há um quê de prisão no ato de confiar.
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Percebam: a confiança é a imposição velada de uma forma de comportamento. Sua mulher diz que confia em você porque ela já traçou mentalmente a forma como deseja que você se comporte. Seu chefe diz que confia em você porque ele espera que você aja de acordo com o que ele pensa ser melhor.
Confiança interpessoal é expectativa sobre o comportamento futuro de outra pessoa e a sensação de calma e segurança oriunda disso (…). A outra pessoa deve se comportar conforme o combinado; se não previamente combinado, de acordo com a lealdade; ou, pelo menos, de acordo com expectativas subjetivas, considerando que ela tem a liberdade e a opção de agir diferentemente (…)
— Livre tradução de trecho do estudo de Kassebaum, 2004, p. 21
Em confiança, temos o alinhamento das expectativas de um indivíduo em relação do comportamento de outro com base na moral, segundo a primeira acepção do termo no Houaiss. Mas eis duas problemáticas:
1. filosoficamente, o futuro consiste em diversos cenários possíveis — alguns convergentes, outros divergentes. Apenas um cenário se tornará real de acordo com ações no tempo presente. Aquele que confia quer reduzir a complexidade dos cenários a apenas um, a apenas o cenário em que tem interesse. Em resumo: ao confiar, você quer simplificar o futuro, fazê-lo de acordo com sua vontade. Mas para isso, deve se utilizar de 1) pessoa a quem devota confiança, e 2) a moral, pois ela serve de fundação para as suas expectativas e para o comportamento do outro;
2. em muitos casos, há o choque entre moral — o conjunto de regras de convívio em sociedade — e ética individual. Assim, torna-se impossível traçar um plano para o comportamento de uma pessoa devido a sua singularidade. Desta forma, confiar é a metade do caminho entre os extremos “conhecer plenamente” e “não conhecer”: se você conhece alguém plenamente, pode contar com a previsibilidade, a “matemática” dos atos e não com a confiança; se não conhece, pode contar com a esperança, o desejo, e não com a confiança.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer tinha uma visão bastante peculiar da confiança:
A maior parte da nossa confiança nos outros é frequentes vezes constituída de preguiça, egoísmo e vaidade: preguiça quando, para não investigar, vigiar e agir, preferimos confiar em outrem; egoísmo quando a necessidade de falar dos nossos negócios nos leva a confidenciar-lhes algo; vaidade quando uma coisa nos torna orgulhosos. No entanto, exigimos que se honre a nossa confiança. Por outro lado, nunca deveríamos irritar-nos com a desconfiança, pois nela reside um elogio à probidade, ou seja, é a admissão sincera da sua extrema raridade que faz com que entre no rol das coisas de cuja existência duvidamos.
Nota-se que Schopenhauer não faz distinção entre confiar de confidenciar, o que poderia gerar controvérsias vãs nas interpretações, que certamente iriam do nada ao coisa nenhuma.
Contudo, valho-me de suas observações quanto à desconfiança: ele chama de “elogio à probidade”; eu chamo de “elogio ao livre arbítrio”. Dedicamos ao ato de desconfiar — sobretudo desconfiar do parceiro, do amigo, de familiares — um viés negativo, facilmente reprovável. Isto se deve ao costume social, ao discurso repetido à exaustão de que desconfiar de quem se ama é não amar plenamente.
Desconfiar não é (ou não deveria ser) suspeitar. Isso carece correção: desconfiar é (ou deveria ser) não confiar. E não confiar é não esperar que o outro ande de acordo com as balizas que nós criamos.
Nota do editor: O PapodeHomem começa hoje a série Dicionário PdH. Mais do que trazer a acepção oficial de termos correntes, o objetivo é, em primeiro plano, levar uma leitura (certamente não a única e tampouco a definitiva) de conceitos do cotidiano; em segundo plano, extrapolar o significado comum por meio do trabalho de interpretação da realidade. Com isso, esperamos ampliar as formas de enxergar o mundo exterior (o que nos cerca) e o universo interior (o que somos e como agimos).
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