Estava no meu terceiro ano do curso de administração, recém-desempregado, quando senti que precisava encontrar algo social para fazer. A ideia era retribuir todos os anos de educação pública que tive e que me ajudaram a entrar numa universidade pública. Foi então que surgiu a oportunidade de lecionar no cursinho da Unesp de Jaboticabal.

 No início, eu seria auxiliar da professora de redação. Acontece que, na semana seguinte, fiquei sabendo que um professor de literatura tinha desistido de dar aula. Por livre e espontânea pressão de terceiros, resolvi assumir as aulas de literatura. Fiquei assustado, confesso. Afinal, como preparar uma boa aula ? 

Eu sabia desde início o que não queria. Eu não queria que os alunos tivessem a mesma experiência que eu vivi (e estava vivendo) com alguns professores: não queria uma aula maçante, um monólogo… Fui conversar com professores dos quais eu admirava as aulas e também li um pouco sobre didática. 

Peguei algumas dicas. Por exemplo: ao final da aula recapitular o conteúdo perguntando aos alunos sobre a matéria para ver se eles realmente tinham absorvido o conteúdo. As aulas estavam ganhando uma fluidez um pouco mais interessante, entretanto eu não estava satisfeito. 

Alguns alunos um pouco mais desmotivados não se interessava pelo conteúdo .  Não julgo. Quem sabe o que realmente quer aos 18 anos de idade? E quem se interessa por Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno (1517)?

Diabo — Do que vós vos contentastes. 

Fildalgo — A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houlá! Hou!… (Pardeus, aviado estou! Cant’a isto é já pior…) Oue jericocins, salvador! Cuidam cá que são eu grou? 

Anjo — Que quereis? 

Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

Anjo — Esta é; que demandais?

Fildalgo — Que me deixeis embarcar.”

Como engajar um aluno usando uma linguagem portuguesa de Portugal tão arcaica quanto a de Gil Vicente? Era 2016 quando eu comecei a procurar outros materiais sobre didática e ensino. Eis que encontrei Paulo Freire, o autor mais citado sobre o tema na academia.

Basicamente Paulo Freire diz que o ensino só será contundente e eficaz, caso o professor tenha um nível de comunicação do aluno, fazendo do ensino muito mais próximo de um diálogo que de uma palestra.

Parece óbvio né? – pois é, mas fazer o simples é complicado.

Por mais que eu entendesse a lógica de ensinar algo com linguajar mais próximo do cotidiano do aluno, aquilo ainda estava muito abstrato. Como levar isso pra prática? E como saber que está funcionando?

Foi então que, um dia, debatendo com uma amiga a importância do Racionais MC na minha vida, um gatilho veio a tona. Eles foram os meus primeiros professores de sociologia, ainda na infância, então, porque não utilizar letras de rap para traçar paralelos com a literatura?!

A partir disso fui desenvolvendo as ideias e as aulas, como por exemplo:

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Duas de Cinco, do Criolo, e Carlos Drummond de Andrade

Usei um trecho da música Duas de Cinco, do Criolo, para fazer um paralelo com o Carlos Drummond de Andrade e o modernismo brasileiro.

“Que vê o professor
Em desespero na miséria
E que no meio do caminho
Da educação havia uma pedra
E havia uma pedra
No meio do caminho

Ele não é preto velho
Mas no bolso leva um cachimbo”

Fim de Semana no Parque do Racionais e Capitães de Areia, de Jorge Amado

 Com a música "Fim de Semana no Parque", dos Racionais, fiz paralelo com Capitães de Areia e o realismo. 

“Olha só aquele clube que dahora
Olha aquela quadra, olha aquele campo
Olha, olha quanta gente
Tem sorveteria cinema piscina quente
Olha quanto boy, olha quanta mina
Afoga essa vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart dá pra ver
É igualzinho o que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube que da hora,
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Do seu pai bem louco gritando dentro do bar
Nem se lembra de ontem, de hoje e o futuro
Ele apenas sonha através do muro”

Diário de um Detento, Vidas secas e a chacina do Carandiru

Utilizei a música Diário de um Detento para demonstrar que a mesma truculência que aconteceu com Fabiano em Vidas Secas e a mesma que aconteceu no Carandiru e acontece até hoje.

Ismália, de Emicida e o Romantismo Brasileiro.

Usei a música do Emicida com Ismália para cativar os alunos a estudarem mais sobre o romantismo brasileiro. E entender que no Brasil,

“A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase”

Pois assim como Ismália várias pessoas correm o risco de terem seu sonhos serem ceifados apenas por causa da sua cor de pele.


Nos últimos anos, a repercussão positiva das frases do Emicida nas provas do Enem tornam os vestibulares um pouco menos assustadores. Eles traziam algo mais familiar e, consequentemente, tranquilo para os alunos.

Após a colocar o rap como uma ferramenta para aproximar dos alunos, as aulas tornaram-se mais dinâmicas, com maior participação dos alunos, quebrando um pouco daquela estrutura quase que militar de professor fala e aluno escuta. 

O rap ajudou a também reafirmar, nas aulas, que devemos ocupar todos os espaços, principalmente as universidades que negligenciam a população pobre e negra (a maioria dos jovens em idade escolar). O rap ajuda nessa construção quando quando o Racionais diz “Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros” (1997) e quando o Emicida afirma, na música AmarElo, "Cê vai atrás desse diploma, com a fúria da beleza do Sol, entendeu?"

Nada é mais gratificante que, após a época dos vestibulares, os alunos retornarem até os professores, matriculados em universidades, agradecendo por termos ajudado a passar no vestibular.

No final das contas, pra mim, o rap acabou sendo não apenas um método de ensino, mas sim um compromisso social.

 

Gilliard de Bello Morandim