"Não acredito em menos
Vou até o fim e você pode ver isso em meu caminhar
Boa conduta faz um homem, faz de mim o homem de hoje
Um homem nunca vai fugir
Se mantenha nobre, eu digo
Eu sou um homem
Mais do que a força de um apertar de mãos e a barba bem feita
Diligência e dedicação é o que vivo, dia após dia
E você pode ver em minhas ações
Seja fiel a si mesmo, eu digo
Isso faz de mim um homem de sucesso
Faz de mim o homem de hoje"
Esse é o texto de um comercial lido por Gerard Butler caminhando em câmera lenta, vestindo um terno impecável. É também a essência da representação masculina na mídia, a meu ver. A rígida busca por um ideal estético, inalcançável, aflitivo.
Eu sou afetado por mensagens como essa, bem mais do que gostaria.
* * *
Quando pequeno sonhava ser forte e bonito como o Raí. Mortal e misterioso como o James Bond. Viril como o Romário e suas míticas “dez-trepadas-sem-tirar-de-dentro”.
Aspirava ser um sucesso precoce (tentei criar meu primeiro projeto sério aos 13 anos, um jogo de cartas tipo "Magic: The Gathering"). Queria ser bom de futebol, desejado pelas mulheres e ter um bíceps estufado o suficiente para assustar outros homens e dar pancada nos que se indispusessem contra mim.
Aos dez anos, fiz um desenho de mim mesmo aos 30 a pedido de uma professora. Eu teria exatos um metro e oitenta, oitenta quilos, uma esposa, dois filhos e um milhão de reais na conta.
Na adolescência me vi coberto de espinhas, o bíceps fino como um galho seco, não era capaz nem de dar um beijo, quanto mais transar. Era um desastre no futebol, relegado à zaga ou ao banco dos reservas. Minhas tentativas de negócios falharam sucessivamente, fui demitido de meu primeiro estágio em menos de um mês, não tinha carro, nem dinheiro em conta. Não sabia brigar e tinha medo de apanhar.
Me sentia apequenado e raivoso. Lembro até hoje do dia em que chorei de desespero na frente de toda a escola, quando dois ou três colegas mais fortes tentaram fazer a “brincadeira” de me trancar num depósito onde se armazenavam objetos. Em casa, me culpei pela demonstração de fraqueza e senti profunda vergonha.
Não estranho que estivesse depressivo ou algo próximo disso aos dezoito. Essa solidão não era só minha, entretanto, vários outros homens sentiam e sentem algo similar. O que anos depois chamamos de solidão masculina, no emblemático artigo de Fred Mattos, foi a própria origem do PdH.
A mídia, a publicidade, a família, os outros homens, as mulheres, nós mesmos, de todos os lados a mensagem é clara, "seja homem", com H maiúsculo. Não há recompensa para o mediano, a glória é reservada aos campeões.
Portanto, a criação usual dos homens gira em torno de força, poder, virilidade, heteronormatividade e dominância. Mas se um poderoso domina incontáveis outros e outras, o que acontece com quem está por baixo? E quem está por cima, o quão satisfeito é com a vida e consigo mesmo, quando ninguém está olhando?
Conversar sobre isso é discutir o gênero masculino. Ao contrário do que se diz por aí, não penso que se resume ao gênero no poder. O enxergo mais como gênero dos extremos.
Muitos no poder, sim, e muitíssimos outros em camadas esquecidas da sociedade.
Cerca de 95% da população carcerária é composta por homens, eles se suicidam 4x mais do que as mulheres no Brasil, estão com desempenho decrescente nas escolas e universidades, adoecem e se deprimem em silêncio, vivem 7 anos a menos do que as mulheres e se matam todos os dias com álcool, drogas, armas de fogo e carros descontrolados — cito fontes pra esses dados aqui.
Esqueça o novo homem: a liberdade de ser comum
A obsessão por prestígio, poder e reconhecimento, em suas mais diferentes formas, aprisiona muitos homens. Vários de nós passam a guiar suas vidas em torno dessa busca, comprometendo sua bússola ética ao menor sinal de ouro à vista.
Ao buscarmos no latim a origem da palavra medíocre, encontramos o termo mediocris, que, originalmente, não tinha uma conotação pejorativa. Significava apenas médio ou mediano, comum. Com o passar do tempo ganhou o significado de algo pobre, banal, sem expressão. Ou seja, estar na média se tornou desprezível.
O carro, o emprego, a esposa, os filhos, o prêmio, a viagem, o corpo, a casa… peça à peça, vamos tentando montar esse quebra-cabeças. E o curioso é que não há vencedores nesse jogo. Quem está "ganhando" tem pânico de perder ou de ser percebido como impostor, quem está por baixo sonha com o topo, quem está no meio abomina se reconhecer medíocre.
Mas não basta mais acumular prestígio, riqueza e influência.
É preciso ser sensível, estar em contato com as emoções, mas cuidado com as frescuras e excessos, ter tempo para a família, ser um pai presente, cultivar hobbies significativos, estar em dia com as notícias, ter um bom desempenho na cama, conquistar todas e expressar seu insaciável apetite quando solteiro, se manter fiel e constante quando comprometido, ser colaborativo no trabalho, mas nunca vulnerável ou fraco demais, pra não passarem por cima de você, ambicioso na medida certa, pra não ser visto como frouxo.
Essas pressões criam sinucas, solidificando "A Caixa do Homem" — Tony Porter explica o conceito nessa excelente palestra —, uma representação visual de nossas limitações:
Dentro, tudo que deveríamos ser. Fora, o que supostamente nos tornaria menos homens.
Confio que o caminho não é apenas trocar a antiga e ultrapassada caixa por uma moderna e contemporânea, pronta pra nos sufocar com imposições refinadas do que é ser um "novo homem". Defendo romper as barreiras dessa caixa e valorizarmos o homem que já somos. Nos sentir bem na própria pele desde já.
Vamos ser todos uns babacas conformados e passivos então?
Não. Isso não é um pacto pela debilidade, uma autocongratulação coletiva ignorando as falhas uns dos outros.
É um chamado para romper ciclos aflitivos.
Pessoalmente, me identifico com noções de potência, agressividade, caos, imaginação, movimento, descoberta, expansão. E uma vez que seja capaz de me sentir bem naquilo que sou hoje, abro espaço pra outras possibilidades, como descobrir escolhas que nunca imaginei possuir.
Posso trocar a força insegura por uma vulnerabilidade confiante. A agressividade descontrolada dá lugar a momentos de ira compassiva. O poder autocentrado e controlador é substituído pela capacidade de beneficiar outros com sua simples presença. A dominância medrosa dá lugar a um fluxo. Uma sexualidade travada pode ceder espaço a mais experimentações, entendendo que curiosidade, desejos e dúvidas são normais para todos. Dançamos por meio de diferentes identidades de acordo com o contexto em que habitamos, não há tanta necessidade de sermos percebidos como vencedores ou o assombroso receio de nos verem como falhas. O foco incessante em acumular riqueza é estilhaçado pela coragem de nos dedicar ao que realmente importa pra nós. Acolhemos os fracassos, tristezas e decepções com mais intimidade, não deixamos que nos definam — assim como não permitimos as conquistas e alegrias nos estagnar.
Por mais que possa vir ou faltar reconhecimento externo, reconhecemos não sermos tudo isso, nem tão pouco.
Encontramos riqueza na posição de aprendiz, nos regojizamos ao assumir o posto de professor e passar adiante o que sabemos. Desistimos de tentar ser uma pessoa interessante. Saltamos fora do tabuleiro e abrimos mão de saírmos vencedores.
Aprendi que é possível manifestar essas inteligências de outros modos, e não falo de um ponto de vista teórico. Convido qualquer um a listar nos comentários qualidades que não possam ser interpretadas por um olhar mais amplo e generoso, menos neurótico, sexista e limitado.
O tamanho da bronca e por onde começar:
Fora os dez anos de estrada da casa, esse ano escutamos mais de 10.000 homens por todo o Brasil, em uma pesquisa online, mapeando seus obstáculos. Separei algumas das maiores dificuldades e sugestões de como lidar com elas.
66.5% deles não falam com seus melhores amigos sobre medos e sentimentos profundos, como faremos no próximo dia 17/12 no encontro "Homens Possíveis: quebrando as prisões masculinas".
77% dos homens se preocupam com sua aparência, mas não falam sobre isso. Bruno Passos nos mostra alguns caminhos para entender e construir seu estilo.
81% gostariam de cuidar melhor da própria saúde, como Jader França abordou no artigo "Daquela vez que fui burro e não fui ao médico — 11 homens contam suas histórias".
45.5% gostariam de se expressar de modo menos duro ou agressivo, mas não sabem como. Para isso o Luciano Ribeiro escreveu o artigo "Como fazer melhores críticas e ser ouvido".
44% sentem pressão por serem os responsáveis financeiros pelo sustento da casa, mas também não falam sobre isso. A palestra sobre dinheiro do Eduardo Amuri no TEDx pode ajudar.
54% querem ter mais tempo pra se dedicar aos hobbies e prazeres da vida, sem serem julgados como frouxos ou pouco ambiciosos. Em uma conversa relacionada ao que Alex Castro tratou em seu "Prisão Trabalho".
45% querem explorar mais sua sexualidade, seja em relacionamentos casuais ou estáveis, como Fred Mattos pondera algumas possibilidades no texto " (18+) Pornografia: o conto de fadas masculino".
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Não é fácil soltar noções marteladas em nossa cabeça por anos a fio. Mas sempre podemos dar o primeiro passo.
O Gerard Butler do cinema é o capitão dos 300 de Esparta, é o homem dos sonhos nas comédias românticas, o bem-sucedido protagonista de inúmeros comerciais. Fora das telas, já lidou abertamente com abuso de drogas, álcool e remédios. Teve seus bons e maus momentos, e faz o que pode pra ser feliz.
É um homem comum, assim como você e eu.
Homens possíveis era uma coluna quinzenal. Hibernou por meses e despertou no apagar das luzes de 2016, por incentivo de Jader Pires e do generoso mecenato de sabonetes Senador.
Mecenas: Sabonete Senador
Senador é o Mecenas da volta da coluna “Homens Possíveis” aqui no PapodeHomem, pois acredita que o homem de verdade já entendeu que ser homem é muito mais do que ser valente e dono da verdade, ele cresce com suas dúvidas, abraça incertezas e hoje vive a liberdade de não ser o que ele não é. Com o passar do tempo, ele descobriu que a única resposta certa é ser fiel a si mesmo.
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