Ler pode ser uma coisa solitária. Não que eu possa negar a delícia que é cobrir o corpo com uma manta quente e, com um livro apoiado nas coxas, viajar por algumas horas. Mas descobrir a possibilidade de compartilhar o que se lê é bastante tentador. Que atire a primeira pedra quem nunca fechou um livro com olhos de interrogação ou línguas quentes para recontarem histórias à sua própria versão. Depois de alguns anos lendo a sós, procuramos companhia.

É claro que já sabia que estes clubes existiam. Aquele filme com Robin Williams e alguma vivência deram conta de apresentar o conceito. Mas clubes de leitura são um tanto quanto intimistas, quase como redutos misteriosos que adentram mundos aos quais não pertencemos. Em alguma hora de nossas vidas a chance bate à porta, e eu é que não fui doida de recusar a primeira chamada.

Boa lábia convenceu um amigo a me acompanhar na leitura de junho. Uma prateleira vazia e – pasmem – uma lista de próximas leituras zerada me permitiram o luxo de engolir o que viesse em mãos. Foi com essa determinação e certa liberdade que caminhamos até a Livraria Zaccara numa quarta à tarde pra comprar Foe.

O livro da vez era do sulafricano J.M. Coetzee, que eu não conhecia, mas já é famoso por obras como Desonra e um prêmio Nobel de Literatura. Tudo certo, tudo promissor… Até eu fechar o livro me perguntando que raios de sentido aquelas palavras todas faziam. E aí eu comecei a me sentir profundamente grata por ter me inscrito num clube do livro.

Ler é hábito

Quem não consegue passar na frente de uma livraria sem conter o comichão entende o que estou dizendo.

É daqueles hábitos que impregnam na pele logo na adolescência, e quando nos damos conta já perdemos o sono e viramos madrugadas. Não é uma questão de treino, mas de se jogar na teia, achar a história que te gruda os olhos, e a partir daí construir o que poderíamos chamar de vício. Descobrir a leitura é como descobrir a sexualidade: fazemos na surdina, aos poucos, tateando com calma, até descarrilhar de uma vez, sem volta.

Ler é uma experiência sensorial: o cheiro das páginas, o peso nas mãos, o recorte afiado das páginas roçando as falanges

A maioria das pessoas que lê muito não vai saber te apontar uma razão do porquê de fazer o que faz: necessidade, prazer, aprendizado, tédio, mãos vazias ou simplesmente porque sempre foi assim.

Costumo dizer que é mais fácil quando o hábito vem de casa. É deitar no colo da mãe que corre os olhos por um romance espírita, admirar o pai que lê até panfleto de supermercado e acumula as respostas pras infindáveis perguntas de uma criança de cinco anos. É imitar e querer juntar dois com dois naquele primeiro livrinho inflável, pra usar na banheira, que tem mais imagens do que palavras. É dormir com a voz materna nas orelhas, contando diferentes versões do João e o Pé de Feijão. Ler é emocional.

Mas pode ser que você ainda esteja procurando motivos pra terminar este artigo se você não é nem daqueles que petiscam um livro por ano. Um clube de leitura, afinal, é pra quem devora obras renomadas, dignas de Nobel e atemporalidade, né?

Não. Assim como a gente não nasce gostando de miojo, nem com aquela mania de escovar os dentes sempre da mesma maneira, o hábito de ler pode ser adquirido. Não posso dizer que é fácil, mas eu tenho certeza que todos temos dentro de nós um apego gostoso por histórias outras que não as nossas próprias vidas, e daí pra ler sem parar é um passo.

A dica é descobrir a história que vai te deixar na fissura – fica mais fácil se você já tiver uma ideia de que gêneros te prendem no cinema e nas séries. Depois, prometer a si mesmo que vai passar das cinquenta primeiras páginas. Quando der conta de si, vai fechar seu primeiro livro querendo mais.

Não comece com preocupações intelectuais. Não vá me pegar um Dostoiévski. Corta essa de julgar o livro dos outros no metrô. Comece pelos mais populares, porque se assim o são, é porque há razão para tal. E associar o momento da leitura a situações confortáveis também ajuda.

Depois que o vício tomar conta fica bem mais fácil expandir sua capacidade de apreensão de conteúdo e concentração. Aí vai ser fichinha acabar com os mais longos e encarar assuntos que não seriam seu primeiro interesse, mas podem te surpreender positivamente. Ah, e também os clássicos.

Entrar pra um clube de leitura se você ainda não lê é uma excelente ideia e um ótimo instrumento de pressão. Ter uma meta pode ajudar bastante pra que você avance na leitura obrigatoriamente em determinado tempo – você não vai querer ser o único da roda que não leu. Além disso, os insights que saem nessas conversas ajudam a afiar as capacidades de interpretação de texto e a delícia de viajar na história.

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É sempre tempo pra começar, amigo.

O clube do livro preenche buracos

Entre as top dez sensações do mundo está o sentimento de fechar um livro inquieto com as palavras finais. Aquele remelexo de quem se questiona o porquê daquela história ter sido contada, o que esse autor está tentando me dizer ou o que aconteceu com a Maricota que sumiu no capítulo catorze. Tem obra que deixa buracos e a gente não consegue nem saber se gostou ou não gostou, se fez sentido ou não fez e se deu barato ou não deu.

É aí que cada livro é um pouquinho planejado pra que a atividade não seja solitária. A mão que treme pra ligar e marcar um café com o teu amigo que te emprestou essa porcaria inconclusiva encontra acalento num clube do livro.

Lá é o espaço de desabafar e assumir que você não entendeu absolutamente nada, e que ficou completamente possesso com aquele final. É o espaço de ouvir interpretações diferentes e juntar lé com tré, formando um conjunto mais harmonioso e possivelmente surpreendente. É ali que a gente aprende a ver pelos olhos alheios e expande a nossa capacidade de interpretação de texto pra possibilidades nunca antes imaginadas.

Ali aprendemos a ler pessoas  e a nós mesmos

Sentada junto ao pessoal, percebi que cada um lê uma história. Nem de longe um livro é obra de seu autor, senão de cada um que a reconstroi nas suas cabeças. A troca de versões em si é bem interessante, mas melhor ainda é perceber que cada história é em parte constituída pela personalidade de cada leitor.

Um livro tem pelo menos dois autores

Os tais buracos que bons autores são capazes de deixar em suas histórias são preenchidos com quaisquer referências de mundo que tenhamos. Assim, projetamos emoções, reações a certezas em cima daqueles personagens, imaginando como devem ter se sentido nas situações propostas e como provavelmente reagiram, mesmo que essas partes não estejam impressas no papel.

Cientes disso e com audições atentas, conseguimos perceber juízos de valor e necessidades emocionais de todos nós, e como estes clubes podem reunir pessoas de diferentes espaços sociais, entender como se forma o nosso mosaico de opiniões tão diversas desse mundo grande.

Um bom clube do livro e um olhar afiado nos forçam a viver fora da nossa bolha.

É um bom lugar pra conhecer gente nova

Se fomos boa gente nos últimos, vejamos, quinze anos, carregamos alguns irmãos de história. Mas é fato que a vida adulta pode tornar o estreitamento das relações mais complicado – em termos diretos, é bem difícil fazer amigos na idade adulta.

Depois de passadas a pelada na rua, a escola, faculdade e quaisquer vínculos diários que te obriguem a amar alguém – trabalho não conta –, conhecer e cultivar relações de intimidade, que permitam conversas interessantes mas também o silêncio confortável, pode ser mais difícil. Frequentar grupos de atividades do seu interesse podem ajudar e muito a estabelecer essas pontes.

Uma reunião do clube pode facilmente se estender pra um jantar, boteco ou vinho – basta alguém propor. Fique amiga daquela pessoa com jeito de topa tudo e sejam as primeiras a propor a esticada: “Eu e a Brenda vamos comer uma pizza depois. Quem vem com a gente?”.

É assim que acabamos chorando de rir às beiras da madrugada ou com o peito cheio e as bochechas altivas depois de uma conversa daquelas que fazem o olho brilhar. Proponha, instigue, convide. Vocês já têm o gosto pela leitura em comum. O assunto vai fluir fácil.

Entregue-se ao luxo de descansar a mente

Mergulhar numa história pode ser quase como apagar memórias ou abafar ruídos. Quando ela te pega pelo pé, não há quem lembre de pagar as contas, cumprir o prazo ou escrever um e-mail. Quando lendo gostosas ficções nas quais os personagens se veem questionando um sem número de problemas, melhor ainda.

Por alguma razão, entrar na vida de outro alguém nos consola. Nos tornamos sujeitos passivos de uma consciência que dorme ao início de cada capítulo, e tudo aquilo que a gente chama de vida se esconde debaixo do tapete.

Precisamos dessa dose de descanso. Se ler a sós já nos enche dessa sensação gostosa, passar boas duas horas trocando impressões sobre uma história com gente que está tão imersa quanto você descansa a alma e pode ser uma delícia.

Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.