Basta puxar na memória para lembrar que as referências literárias nas aulas da escola tinham quase sempre o mesmo perfil: homens e, em sua grande maioria, brancos.
Era de se esperar que diversos nomes ficassem fora dessa lista. Entre eles está o de Carolina Maria de Jesus: negra, favelada e mãe solteira, ela se despiu da roupagem empurrada por uma sociedade racista para se tornar uma grande escritora, ainda ausente nos currículos escolares.
A poetisa que só frequentou a escola por dois anos
Carolina Maria de Jesus nasceu na comunidade rural de Sacramento, Minas Gerais. As dificuldades começam já em sua data de nascimento, 14 de março, que é aproximada. O ano era 1914 e, naquela época, registrar uma criança negra era uma tarefa difícil para as famílias, sobretudo pela questão financeira. Seus pais eram analfabetos e a colocaram em uma escola, mas ela só estudou por dois anos. Esse curto período acadêmico foi o suficiente para que Carolina se apoderasse das palavras de uma forma única.
Ainda adolescente, era repreendida pelo curiosidade excessiva e rejeitada por não se enquadrar nos padrões destinados erroneamente às mulheres negras da época: o lugar dos bastidores, sem privilégios e sem protagonismo. Carolina Maria desejava ir além, queria usar a literatura para fugir daquela realidade desumana e tomar as rédeas de sua vida para si.
E, seguindo esse pensamento, ela se mudou para São Paulo em 1947, período em que as primeiras favelas eram levantadas na capital paulista.
“A mulher da favela tem que mendigar e ainda apanhar”
Chegando em São Paulo, se deparou com a face excludente da cidade grande e, junto a isso, presenciou questões que se estendem até os dias de hoje. Uma parte muito importante na discussão acerca do feminismo atual é o reconhecimento das especificidades pertencentes a cada contexto. A opressão sofrida por uma mulher branca de classe média não é igual à sofrida por uma negra moradora da favela. Naquela época, Carolina já tinha um olhar cuidadoso em relação a isso, presenciando não só os abusos sofridos pelas periféricas, como refletindo sobre a questão da solidão da mulher negra.
Nunca se casou, pois não queria se tornar refém de um relacionamento que a limitasse ou maltratasse. Com os diversos casos de agressão dos quais tinha notícia, ela sabia que, por mais que a ausência de um companheiro machucasse, não valeria a pena correr o risco de se deixar controlar por um homem. Mendigar amor e ainda apanhar não eram coisas que ela queria para si.
Favela do Canindé
Carolina Maria trabalhou como empregada doméstica na casa de um médico. Usava seus dias de folga para explorar a extensa biblioteca que o patrão cultivava, e assim começou a construir um rico repertório literário. Em 1948, após um envolvimento passageiro, descobriu que estava esperando uma filha e acabou perdendo o emprego. Grávida e desempregada, Carolina se tornou catadora de papel e construiu um pequeno barraco na favela do Canindé para conseguir sobreviver.
Com as andanças provocadas pelo recente ofício, acumulou em sua casa um grande número de folhas e cadernos encontrados no lixo, que serviam de material para que ela escrevesse sobre a realidade que a cercava. Para a escritora, a favela era tão preterida que se configurava como o quarto de despejo de uma cidade. Essa expressão deu título à sua principal obra, “Quarto de Despejo: O diário de uma Favelada”
“Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.”
Quarto de despejo
Nessa jornada como escritora, ela traz uma importante lição: valorizar nossa própria produção intelectual. Carolina se orgulhava das páginas que escrevia, e queria ser reconhecida por isso. Procurou diversas vezes quem pudesse ajudá-la a publicar seus textos, até que em 1958 o jornalista Audálio Dantas foi até a favela do Canindé para fazer uma reportagem.
Aproveitando a presença do jornalista, Carolina levou-o até sua casa e mostrou as dezenas de cadernos que havia acumulado, relatando o cotidiano do lugar em que morava e como era ser uma mulher preta e pobre. Naquele momento, Audálio percebeu que a descrição feita por ela era muito mais rica do que qualquer reportagem que ele tentasse fazer, porque Carolina não apenas olhava a favela; ela vivia a favela, a pobreza, a fome.
Assim, “Quarto de despejo: O diário de uma favelada” foi publicado em 1960 e traduzido em diversas línguas, sendo a principal obra da autora. Ela também gravou um disco com o mesmo título, no qual cantava músicas que ela mesmo havia escrito, como a canção “Pobre e Rico”.
“Se é que existe reencarnação, eu quero voltar sempre preta”
Uma das formas mais potentes de incentivar a resistência e sobrevivência de um grupo marginalizado é a representatividade. “O Brasil precisa ser dirigido por alguém que já passou fome” dizia Carolina. Se enxergar em canais, sejam eles de menor ou maior circulação, faz com que as pessoas se sintam parte efetiva de um todo, se reconheçam pertencentes a um contexto.
Quando Carolina Maria traz para sua produção a descrição da própria realidade, ela também coloca, automaticamente, o cotidiano de diversas outras pessoas periféricas nas páginas de um livro. Isso fatalmente as tira de uma situação invisibilizada, tornando-as mais fortes e confiantes. Caminhando ao lado disso, está a consciência de negritude que ela carregava consigo. Em um contexto racista no qual se descobrir negra é doloroso, construir as páginas e a vida com orgulho da sua cor, de seu corpo, da textura do cabelo e valorizando sua própria produção intelectual, reconhecendo-a como algo valoroso e rico, era um ato rebelde de Carolina.
E isso se estende como ferramenta de mobilização e empoderamento até os dias de hoje. Seu papel como poetisa, autora de uma produção forte e uma sensibilidade literária grandiosa, deve ser reconhecida tanto quanto o dos autores cobrados em listas de vestibulares ou lidos e incentivados em sala de aula.
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