Nos anos 80, o blues experimentou uma espécie de ressurgimento. Muitos puristas olham com certo desdém para essa fase, pois os avanços tecnológicos — mais a agressividade da indústria musical, que pegava pesado no marketing — pareciam tirar a grande qualidade do blues, que é a sua espontaneidade.
Mas, por bem ou por mal, foi um período rico que fez com que grandes artistas como John Lee Hooker e Eric Clapton fossem redescobertos pelo grande público. E, claro, também foi uma época em que novos nomes surgiram, caso de Robert Cray. Mas talvez nenhum outro nome seja tão emblemático para essa época como o de Stevie Ray Vaughan.
Considerado um dos maiores e mais influentes guitarristas do blues, o texano Vaughan foi um dos grandes pilares da renovação que o blues experimentou na década de 80. Com uma guitarra que transitava entre a melancolia do blues clássico e a agressividade do rock, ele alcançou sucesso internacional em pouco tempo, abrindo as portas do gênero para toda uma geração. Sem ele, o blues poderia até ter experimentado um ressurgimento nesta época, mas certamente sem a mesma força.
Agora, para se apreciar Vaughan, é preciso antes de tudo saber apreciar o blues rock, gênero que cresceu na Inglaterra no final dos anos 60, graças a bandas como Cream — cujo guitarrista era o próprio Clapton — Led Zeppelin e até mesmo Black Sabbath (sim, os pais do metal se consideravam uma banda de blues rock). Afinal, por mais que seja um músico de blues — ou melhor, um excelente músico de blues — a grande influência de Vaughan foi o blues rock, seja ele inglês ou americano.
Uma prova disso está em seu maior sucesso, Pride and Joy. Trata-se de um blues clássico em estrutura, mas extremamente acelerado, quase um hard rock. Ou seja, o texano, logo em seu primeiro disco, Texas Flood, lançado em 1983 e hoje considerado um clássico, já mostrava que, ao menos nas cordas de sua guitarra, qualquer fronteira separando o blues e o rock não existia.
Quem conhece apenas essa música certamente colocaria Vaughan como um guitarrista de rock — mesmo com o blues delicioso que ele deixa escapar de sua guitarra durante a canção inteira. Porém, a melhor música do disco, na minha opinião, é um blues clássico e arrastado que mostra todo o talento do guitarrista, não apenas como instrumentista, mas também como cantor.
Texas Flood, a música que batiza o álbum, é um clássico do blues que ganhou vida em 1958 por Larry David. É uma daquelas canções que foi regravada por todo mundo, incluindo Buddy Guy e Willie Nelson. Mas a versão definitiva mesmo é a de Vaughan, que consegue carregar de emoção uma história simples: com uma enchente no Texas, as linhas telefônicas deixaram de funcionar e o cantor não consegue falar com a mulher que ama.
A letra é a cara do blues: simples, realista e emocionante. Vaughan canta com uma dor digna dos grandes nomes do gênero e mostra seu virtuosismo num solo doce e melancólico, mas ao mesmo tempo moderno, com distorções. Não é à toa que a Rolling Stone colocou a música na sua lista de Melhores Canções de Guitarra. Uma versão que nasceu clássica.
Não é à toa que, desde o começo de sua carreira, Stevie Ray Vaughan foi reconhecido — e muitas vezes abraçado — por outros blueseiros. Mais que um moleque texano que tocava guitarra à frente da banda Double Trouble, Stevie era visto como um blueseiro — ou, ao menos, como um legítimo herdeiro dos grandes nomes do gênero.
Uma prova disso é o histórico show em que dividiu os palcos com ninguém menos que um dos três reis do blues, Albert King (B. B. e Freddie são os outros dois “kings”). Gravado para a televisão canadense, In Session virou um álbum e marca um dos grandes pontos da carreira de Stevie, que faz um duelo de guitarras espetacular com um dos maiores nomes do blues em músicas magistrais, como a versão gigante e maravilhosa de Call It Stormy Monday. clássico de T-Bone Walker.
O vídeo mostra que Vaughan não era apenas talento, mas também carisma. Frente a frente com um gigante do blues, ele faz sua guitarra acompanhar a de Albert King o tempo inteiro. Não apenas não se mostra intimidado como, ao contrário, parece até mais relaxado que o veterano. Poucos meses após o lançamento do seu primeiro disco, Stevie Ray Vaughan já se comportava como um mestre do blues. Nada mal para um garoto que havia aprendido a tocar guitarra influenciado por seu irmão (Jimmy Vaughan, que também faria sucesso no campo do blues rock com a banda The Fabulous Thunderbirds).
Foi uma carreira meteórica, com quatro discos de estúdio lançados em seis anos. Todos eles extremamente bem sucedidos, algo tão importante para o próprio Stevie como para o blues. Isso sem falar nos diversos álbuns ao vivo, incluindo um que reunia trechos de suas duas apresentações no festival de Montreaux (uma em 1982, outra em 1985) e que apenas reforçam o talento de Vaughan e do Double Trouble.
No segundo show, que conta com a participação de Johnny Copeland, um versão monstruosa de Tin Pan Alley — originalmente gravada por Jimmy Wilson em 1953 — se tornou outro clássico. É um blues puro e arrastado, num arranjo elegante e com improvisações fenomenais.
Tudo acabou em 26 de agosto de 1990 em Wisconsin. Após o segundo show com Eric Clapton, Stevie Ray Vaughan embarcou num helicóptero ao lado de três membros da equipe do inglês. O tempo estava horrível e, pouco após a decolagem, a aeronave perdeu o controle e chocou-se com uma montanha. Todos os ocupantes, incluindo o piloto, morreram instantaneamente.
Durante muito tempo, uma história dizia que era Clapton quem deveria estar no voo, mas na última hora teria cedido seu lugar para o texano. Porém, o próprio guitarrista desmente isso em sua autobiografia, alegando que isso é apenas uma lenda. E o blues, assim como o rock, é cheio delas.
Sua morte causou um impacto enorme não apenas no blues, mas no meio musical como um todo. Seu funeral contou com a presença de inúmeros artistas, e teve até mesmo Stevie Wonder, Bonnie Raitt e Jackson Browne cantando Amazing Grace em homenagem ao guitarrista (o vídeo abaixo, uma reportagem sobre o enterro, tem uma cena disso).
Caso esse acidente não tivesse acontecido, a história do blues hoje seria diferente. Vaughan já era um monstro e, à época da morte, havia superado os vícios em álcool e drogas e estava pronto para dar passos ainda maiores. Como eu disse acima, o blues é repleto de lendas. Uma delas, porém, desapareceu antes que pudesse reinar completamente. A nós, resta apenas a memória de seu talento e sua música.
Clique e Ouça — Músicas para Conhecer:
Mary Had a Little Lamb — Logo em seu primeiro disco, Stevie Ray Vaughan gravou uma versão deliciosa para a canção de Buddy Guy. A música se tornou presença frequente em seus shows e era um dos pontos altos do espetáculo (neste link, o solo que começa a partir de 2:00 ilustra bem a facilidade do guitarrista em transitar entre o blues e rock).
Little Wing — É preciso ser um gênio para gravar uma música de outro gênio. Aqui, Vaughan faz uma interpretação fiel e deliciosa de Little Wing, de Jimi Hendrix.
The Taxman — Beatles como blues? Sim, agradeça a Stevie Ray Vaughan que conseguiu a proeza de criar uma versão blueseira para a canção que abre o clássico Revolver.
The Sky is Crying — Com uma guitarra distorcida e melancólica, um dos maiores clássicos (e minha canção preferida) de Elmore James ganha uma roupagem moderna sem jamais perder sua alma melancólica.
Bônus Track: Como curiosidade, deixo um vídeo que encontrei alguns anos atrás e me deixou de queixo caído. Trata-se de um registro quase amador do guitarrista durante a passagem de som antes de algum show. Relaxado e sem plateia, temos apenas um homem, sua banda e blues. E no caso de Stevie Ray Vaughan, isso era muito.
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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai – pasmem – todos os sábados.
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