Até hoje, ninguém sabe a história direito.
Alguns dizem que a discussão começou por causa de uma dívida de jogo e Marion Walter Jacobs acabou sendo golpeado com um cano na cabeça. Outros, porém, defendem que a briga teria sido causada por uma mulher, e o golpe na cabeça foi, na verdade, um murro bem dado, desferido — provavelmente — pelo irmão da garota.
A única certeza que todos tinham era que aquilo iria acontecer mais cedo ou mais tarde. As brigas de Jacobs na rua se tornavam cada vez mais frequentes (e na maior parte das vezes com resultados negativos). Apesar de jovem, seu rosto era marcado por um número cada vez maior de cicatrizes, algo que denunciava seu gênio explosivo.
Todos sabiam que ele era estourado, mas isso parecia piorar a cada dia. Desde o começo dos anos 60, o blues começava a cair para segundo plano, ultrapassado pelo rock. E o fato das bandas inglesas venerarem os antigos blueseiros como deuses não importava para Jacobs. Tudo o que ele conseguia ver era seu discos vendendo cada vez menos e as plateias dos seus shows esvaziando continuamente.
Aparentemente, a pressão por conquistar o sucesso foi pior que a pressão para reconquistá-lo. Jacobs começou a demonstrar um temperamento errático e violento. Andava armado e, algumas vezes, chegou ate mesmo a puxar a arma nos palcos. Tornava-se cada vez mais difícil conviver com ele. A briga daquela noite, em alguma rua no sul de Chicago, não foi a primeira. Mas foi a última. Jacobs foi para a casa de uma namorada e pegou no sono.
Nunca mais acordou.
Poucas horas depois, a notícia começou a se espalhar. Primeiro, por Chicago; depois para o resto do país. Little Walter, o gaitista mais importante da história do blues, estava morto.
A causa da morte não foi o golpe sofrido horas antes, mas sim o acúmulo de surras que levou. Seu corpo estava completamente machucado internamente, e os ferimentos da última briga apenas pioraram sua situação. Tinha 37 anos e morreu dormindo, talvez em um dos poucos momentos que conseguia ficar em paz com o mundo e, mais importante, consigo mesmo.
Talvez seja quase impossível calcular com precisão a influência de Little Walter na história da gaita — não é por acaso que ele é comparado a nomes como Jimi Hendrix e Charlie Parker. Afinal, ele não aprimorou o uso do instrumento; ele simplesmente reinventou a gaita.
Ao escrever a gramática da gaita do blues elétrico (e do rock), Walter mudou a história do blues. Não há um gaitista, hoje, que não seja inspirado pelo seu som, de uma forma ou outra. Junior Wells, James Cotton, Big Walter Horton, Charlie Musselwhite… Todos têm estilos diferentes, mas bebem da mesma fonte: Little Walter.
A canção acima, Juke, é um marco no blues. Foi gravada em 1952 e, até hoje, é a única música instrumental de gaita a ocupar o topo da lista de R&B da Billboard. Era a “música assinatura” de Little Walter e mostra bem o seu talento em tirar sons até então inéditos da gaita, tornando-a quase um novo instrumento.
Para entender melhor a importância de Walters, é preciso pensar na gaita na virada dos anos 40 para a década de 50. Esta foi a época em que as guitarras ligadas em amplificadores começaram a aparecer, e com isso a gaita perdeu sua força, já que seu som se tornava apenas um coadjuvante da música. Muitos gaitistas dessa época, como Sonny Boy Williamson I (falei sobre ele nesse texto aqui), desenvolveram uma técnica de segurar a gaita e o microfone ao mesmo tempo, amplificando o som.
Walters foi além. Ao invés de usar o microfone somente para ganhar volume, ele começou a explorar o conjunto gaita + microfone para descobrir novos sons e tonalidades até então inéditas. Um de seus biógrafos aponta com segurança que Little Walters foi o primeiro músico da história (pensando em qualquer instrumento e em qualquer gênero) a usar a distorção eletrônica. Em outras palavras, ele expandiu o instrumento de uma forma que, para muita gente, divide a história da gaita em dois períodos: antes e depois de Little Walter.
O sucesso de Juke para os executivos da Chess não foi surpresa — a prova disso é que eles, de forma ousada, lançaram a música como Lado A do primeiro disco solo de Walters (o lado B é uma música mais tradicional, com vocal, Can’t Hold Much Longer). Afinal, ele já estava fazendo miséria tocando gaita (ainda acústica) como um dos principais membros da banda de Muddy Waters, maior astro da casa, desde 1948. Foi apenas em 1951 que ele experimentou usar a gaita e o microfone juntos, em Country Boy, de Muddy (veja no final do post).
Se seu talento com a gaita é inegável — e sua curta carreira solo respeitadíssima — eu pessoalmente prefiro o trabalho de Walters ao lado de Muddy Waters. Na minha opinião, é um dos casamentos mais felizes da história do blues, que resulta em um som inesquecível, quase mágico. O meu exemplo preferido é na clássica I Just Want to Make Love to You, uma das músicas que mais gosto em toda a história do blues.
Já falei um pouco sobre ela no post sobre Etta James, mas a versão de Muddy Waters, para mim, beira a perfeição. É uma música extremamente sexual, e se a voz de Etta valoriza isso, Muddy Waters faz ela soar como um grito de liberdade. Entretanto, a partir de 1:16 (logo após o guitarrista repetir “love to you” diversas vezes, de uma forma quase hipnótica), começa o solo de Little Walters, que escancara de vez a sensualidade da canção.
Existem dias que eu ouço essa música apenas por causa do solo. Acho que é um dos sons mais sensuais que escutei, mas ele não tem aquela sensualidade que estamos acostumados, especialmente hoje em dia. É melancólico e solitário, com uma sensualidade que soa elegante e suja ao mesmo tempo, como se remetesse a um sentimento proibido. Para mim, o solo de Little Walter em I Just Want to Make Love to You são cerca de trinta segundos que definem todo o sentimento por trás do blues.
A parceria entre os dois era tão mágica que, mesmo após a saída de Walters da banda de Muddy Waters para dar início ao trabalho solo, o guitarrista o chamava frequentemente para participar de suas gravações — algo que os executivos da Chess, que estavam longe de ser bobos, apoiavam totalmente. Juntos, construíram um dos maiores pilares da história do blues, enquanto Walters conquistava bastante sucesso, também, atuando à frente de sua própria banda.
Durante os anos 50, Walters emplacou mais de dez músicas nas paradas, um feito que se torna ainda mais relevante quando se pensa que estamos falando do auge do blues baseado em guitarras elétricas. Além de Juke, conquistou o primeiro lugar com aquela que talvez seja seu maior sucesso: My Babe, em que ele não apenas toca como também canta, acompanhado de monstros como Robert Lockwood em uma das guitarras e Willie Dixon (também compositor da letra, sobre o tema clássico do homem que namora uma mulher que não admite ser traída) no contrabaixo.
Entretanto, durante os anos 60, veio a decadência — ao menos na cabeça de Little Walter. Ele continuava se apresentando normalmente e chegou até mesmo a excursionar duas vezes pela Europa, e já era reverenciado como um dos maiores gaitistas de todos os tempos. Mas para ele isso não parecia suficiente perto do sucesso financeiro da década anterior.
Aliada ao alcoolismo, sua personalidade explosiva jogou sua vida pessoal em uma espiral que culminou com sua morte aos 37 anos de idade. Morreu naquela briga, mas claramente poderia ter morrido na anterior ou na seguinte.
Foi um dos últimos blueseiros a se comportar claramente como bandido, algo que era muito mais comum no início do século e, a meu ver, sempre foi um dos grandes atrativos da mitologia do blues. O estereótipo do astro do rock faz seus excessos e maluquices cercado de modelos em quartos luxuosos de hotel; já o blues sempre foi mais marginal, mais “rua”, sempre caminhando na tênue linha entre a arte e a criminalidade. É pistola na cintura, é contrabando, é resolver as coisas brigando na calçada…
E, no caso de Little Walter, é uma morte que vira folclore e rende histórias, mas que, no fim das contas, é estúpida, já que o deus da gaita do blues nunca soube lidar com seus próprios demônios.
Felizmente, nada apagou seu talento muito menos sua importância, como talvez ele tivesse medo que acontecesse. Se Little Walter morreu em 1968, sua arte permaneceu viva. E tudo o que ele inventou com a gaita jamais se perderá: sempre que um gaitista começar a tocar blues, saiba que existe um pouco de Little Walter ali.
Para encerrar o post, um dos poucos vídeos que conheço dele, ao lado de Hound Dog Taylor. É um registro de sua última excursão pela Europa, meses antes de sua morte. Mesmo tocando a gaita “acústica”, o vídeo deixa claro: nunca haverá outro Little Walter.
Clique e Ouça : Músicas para Conhecer
Country Boy — 11 de julho de 1951: esta é a data da gravação de Country Boy, nos estúdios da Chess, o dia em que o gaitista da banda de Muddy Waters gravou, pela primeira vez, o som de sua gaita amplificada.
Sad Hours — Um som arrastado, que, em muitos momentos, lembra o solo de I Just Want to Make Love to You, mas sem a sensualidade. Aqui, como o próprio nome indica, estamos falando de solidão e tristeza… Sem dizer uma palavra, pois a gaita de Little Walter expressa tudo o que precisamos saber.
Mean Old World — Cover fantástico do grande sucesso de T-Bone Walker (falei dele aqui, caso você não tenha visto), que ganha uma nova cara graças ao pulo da gaita de Little Walter para o primeiro plano.
Teenage Beat — Robert Lockwood e Luther Tucker na guitarra. À frente da dupla, Little Walter solta sua gaita sem seguir nenhum formato, apenas acompanhando o ritmo, como numa jam improvisada. O resultado é mágica pura.
Bonus Track: Em 2008, Little Walter foi homenageado pelo Rock and Roll Hall of Fame. Na ocasião, foi exibido este vídeo, que retrata bem a sua importância no blues, com depoimentos de monstros como Pinetop Perkins, Eric Clapton e Junior Wells, outro mago da gaita.
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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai – pasmem – todos os sábados.
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