Sempre que alguém começa a ouvir blues e me pede sugestões de artistas clássicos, eu uso um filtro para indicar artistas antigos. Normalmente meu limite vai até Robert Johnson e já com algumas ressalvas. Afinal, o fato de ouvir B. B. King ou Buddy Guy não faz com que uma pessoa esteja pronta para ouvir gravações repletas de chiados, arranhões e variações de volume. O mais comum é que ela ache aquilo horrível e volte para o blues dos anos 50 em diante, e nunca mais chegue perto do blues gravado antes da II Guerra.
Para apreciar o blues do início do século, é preciso não apenas disposição para entender o som, como também algum “treinamento” de ouvido. É por isso que eu nunca recomendei que alguém ouvisse Blind Lemon Jefferson. E olhe que estamos falando de um dos maiores blueseiros de todos os tempos, que não apenas influenciou inúmeros músicos — não apenas de blues — que vieram depois dele como mudou as regras da indústria musical.
Afinal, estamos falando de um artista cujas gravações possuem quase noventa anos. Mas aí entra a história do copo meio cheio ou meio vazio. Para o público casual, são canções extremamente difíceis de serem compreendidas. Para o amante de blues, porém, a obra de Blind Lemon é um tesouro de valor inestimável, que praticamente escreve a gramática do gênero.
Mas não é exagero. É uma música diferente — talvez até “feia” para os padrões comerciais de hoje, com vocais gritados — então dou um conselho. Ouça a canção abaixo e, caso esteja disposto a continuar se aventurando pelo mundo de Blind Lemon, continue a ler o texto. Caso contrário, salve o texto e volte para ele daqui a um tempo, com o ouvido mais treinado para blues antigos — algo que vou falar muito aqui. Confie em mim: se você gosta de blues, Blind Lemon Jefferson precisa não apenas ser descoberto, mas descoberto da forma certa.
Independente do estranhamento que o jeito de Blind Lemon cantar possa causar — e tudo fica mais fácil se você acompanhar a letra da canção, algo que é impossível negar é o seu talento com o violão. Afinal, esse era um dos pontos fortes de seu trabalho, devido não apenas ao seu talento como à geografia.
Lemon Henry Jefferson nasceu no Texas em 1893 — durante muito tempo, acreditou-se que era 1897 — e, tocando violão desde menino, ele foi influenciado pelos músicos que percorriam a região onde morava e os trabalhadores de plantações que cantavam nas colheitas de algodão (o que explica o modo gritado como ele canta). Ou seja, ele teve a mesma influência dos blueseiros do Mississipi… Mas um elemento único somou-se a isso. Por morar perto da fronteira, ele tinha muito mais contato com músicos mexicanos que incorporavam ritmos latinos — sobretudo flamenco — em suas canções, algo que contribuiu para que ele se tornasse um dos mais hábeis instrumentistas da história do blues.
A música acima é um dos seus maiores sucessos — apesar de não ser de sua autoria. Victoria Spivey havia gravado Black Snake Blues em 1926, e Blind Lemon, apenas um ano depois, gravou Black Snake Moan, que se tornou praticamente a versão definitiva da música. Ainda hoje há uma enorme discussão entre pesquisadores e fãs de blues a respeito do significado da canção, mas ao menos na primeira estrofe o teor sexual parece mais que explícito.
E esse é um dos pontos mais importantes na carreira de Blind Lemon Jefferson: suas letras são tão insinuantes quando a dos blueseiros que surgiram depois dele, mas talvez sejam ainda mais desesperadas que o habitual. E como trata-se de um sujeito que vendia milhares de discos em uma época onde nenhum outro blueseiro que tocasse acompanhado apenas de seu violão gravava em estúdio, estamos falando, sim, de um dos maiores fenômenos da história da música.
Antes de falar sobre isso, vamos focar um pouco no desespero de suas letras. Um de seus maiores sucessos foi See That My Grave is Kept Clean, em que a letra é claramente póstuma, com o cantor narrando seu enterro — a causa da morte nunca é revelada, apenas que “meu coração parou e minhas mãos se tornaram frias” — e pedindo ao ouvinte que mantenha sua sepultura limpa.
É uma situação que vai muito além dos corações partidos — e a tristeza e os crimes decorrentes disso — e da falta de dinheiro cantada por mulheres como Bessie Smith e Ida Cox. Por mais que algumas músicas de Smith sejam ainda mais tristes musicalmente falando, Blind Lemon explora aqui a situação máxima da solidão: a própria morte.
E este é um dos pontos fortes da sua trajetória e sua importância. Para entender isso, precisamos voltar aos anos 20 e entender como a indústria da música funcionava. Nos anos 20, os blueseiros que vagavam pelo interior de estados como Mississipi e Texas não apenas existiam como cresciam cada vez mais em número. Entretanto, mesmo fazendo sucesso regional, não chamavam a atenção das grandes gravadoras. O consumidor de discos, afinal de contas, morava nas cidades grandes e buscava um som mais refinado, algo que a indústria traduziu como “cantoras acompanhadas de orquestras”, o que explica o enorme sucesso alcançado por Ma Rainey — e, posteriormente, sua discípula Bessie Smith — e outras damas do blues.
Tudo isso mudou graças a Blind Lemon, o homem certo no momento certo. Ao perceber que o blues fazia sucesso nas grandes cidades, as gravadoras passaram a buscar artistas que representassem as origens do gênero. Até então, pouquíssimos artistas que se apresentavam apenas com violão haviam entrado em estúdio — talvez o primeiro caso seja de Papa Charlie Jackson, blueseiro de Nova Orleans que gravou suas primeiras músicas — também em Chicago e também para a Paramount Records — em 1924, mas que apenas posteriormente alcançaria um sucesso mediano.
Enquanto tudo isso acontecia, Blind Lemon ganhava cada vez mais sucesso não apenas no Texas como em diversos outros estados do Estados Unidos — sabe-se que ele chegou ao Mississipi, onde seu blues se tornou ainda mais rico e, em contrapartida, influenciou alguns músicos locais. É um período bastante vago em sua vida — há rumores que ele teria se casado e se tornado pai, mas nunca foi encontrado um documento que provasse isso.
O ponto é que, em 1925, um caçador de talentos no Texas convenceu Blind Lemon a gravar uma demo, que foi enviada para a Paramount Records em Chicago. Não deu outra: algumas semanas depois Jefferson foi levado para Chicago para gravar profissionalmente — ou, ao menos, o mais perto disso, já que os estúdios da Paramount tinham recursos bem pobres mesmo para os padrões da época.
Como é padrão na história do blues — apesar de não se saber o motivo nesse caso — Blind Lemon lançou suas primeiras gravações com um pseudônimo (Deacon L. J. Bates), prática que ele usaria outras vezes em sua carreira. O que parece mais inesperado é que, ao invés de gravar blues, Jefferson gravou duas músicas gospel: I Want to be Like Jesus in my Heart e All I Want is that Pure Religion.
Entretanto, se os motivos para ele escolher logo isso em sua primeira gravação não são claros, o simples fato de que ele sabia tocar gospel é facilmente explicado. Primeiro, era um sujeito extremamente religioso ou, ao menos, temente a Deus — o que muitas de suas letras, mesmo as de blues, deixam claro. Segundo, como já falei no texto sobre Robert Johnson, a maior parte dos blueseiros dessa época preferiam tocar blues, mas sabiam tocar qualquer outro gênero ou estilo, já que sua principal meta era sempre agradar a plateia e ganhar uns trocados.
A partir daí, não foi apenas a vida de Jefferson que mudou; a história da Paramount Records e do blues como um todo também foram transformadas. Blind Lemon se tornou um dos maiores astros de seu tempo. Ganhou um Ford da gravadora, quase como uma compensação por não ter direitos autorais sobre suas músicas — algumas lendas dizem que ele teria comprado um carro e contratado um motorista, mas hoje isso é visto como boato. E, mesmo quando começou a brigar por valores maiores — sobretudo no que dizia respeito aos direitos de suas composições — parece que ele tinha uma conta bancária com um saldo de US$ 1500, uma pequena fortuna à época.
As gravações, claro, eram frequentes –e vendiam como água. E isso transformou a Paramount na maior gravadora de blues dos anos 20 — a empresa também tinha os contratos de Ma Rainey e Blind Blake, outro grande blueseiro da época que seguiu os passos de Blind Lemon. E a simples presença de Blind Blake nessa história mostra a importância de Blind Lemon Jefferson: ele foi o pioneiro que abriu caminho para que blueseiros rurais conquistassem o mundo das gravadoras, estabelecendo o costume que se tornaria padrão até os anos 50, quando o blues se tornou definitivamente elétrico e as primeiras bandas — quase sempre lideradas por um guitarrista — foram formadas.
Em outras palavras: sem Blind Lemon Jefferson, teríamos nomes como Son House, Robert Johnson, Skip James, Charley Patton? Certamente. Mas sem ele, dificilmente teríamos tantas gravações de blues dos anos 20 e início dos 30, já que foi seu sucesso que fez as gravadoras correrem atrás de artistas que hoje são considerados gênios e, sem esses discos, seriam apenas lendas (isso se não tivessem sido esquecidos).
Mas sua importância musical — e não em termos de indústria ou história — é ainda maior. Jefferson é considerado o pai do Texas Blues, gênero que se caracteriza por ser mais relaxado e ter um swing maior que os outros estilos. T-Bone Walker, Lightnin’ Hopkins, Albert Collins, Stevie Ray Vaughn… Todos são discípulos, em maior ou menor grau, de Blind Lemon Jefferson. T-Bone Walker, na verdade, foi aluno de Blind Lemon, que o ensinou a tocar violão em troca de seus serviços como guia.
Evidentemente, como acontece com grandes blueseiros, sua influência vai além do blues e mergulha de cabeça no rock, especialmente com Matchbox Blues que, décadas depois se tornaria um dos primeiros sucessos de rock ao ganhar uma versão rockabilly nas mãos de Carl Perkins (que também tem trechos na letra de uma versão de Lost Wandering Blues, de Ma Rainey) que creditou a si próprio como autor da canção — em 1964 os Beatles regravariam a versão de Perkins, com Ringo Starr nos vocais.
Mas o que chega a ser impressionante é que Blind Lemon Jefferson é apontado como um dos maiores nomes do blues em todas as listas… Com uma carreira que durou apenas quatro anos. Sim, ele chegou a gravar cerca de cem canções nesse período, mas ainda assim é um tempo muito pequeno. Isso porque, como é normal no blues, sua história terminou de forma trágica.
Caso você já tenha se perguntado por que existem tantos cantores cegos no blues (e sempre identificados como Blind-alguma-coisa)… Bem, existem diversas teorias a respeito disso, e, para mim, elas se completam. Alguns dizem que a cegueira era devida à baixa nutrição; outros afirmam que era decorrente do hábito de beber álcool destilado de forma caseira e tosquíssima. Independente do motivo, um garoto cego jamais conseguiria trabalhar na lavoura, então tinha apenas o blues como modo de vida. Com isso, não estou dizendo que todos os cegos viraram blueseiros, e sim que todos os blueseiros cegos jamais encontrariam outro emprego com facilidade.
Blind Lemon Jefferson nasceu cego. E morreu, em 1929, provavelmente por causa da cegueira. Não se sabe a história ao certo, apenas que aconteceu durante uma tempestade de neve numa madrugada de Chicago. Alguns dizem que ele foi assaltado, outros que seu chofer o teria abandonado. Outros dizem que ele bebeu café envenenado por um marido ciumento, ou que ele teria sido atacado por um cão.
A versão que parece mais aceita, porém, é mais simples: ele simplesmente ficou completamente desorientado durante a nevasca e não encontrou o caminho para casa. A causa oficial da morte foi ataque cardíaco — ou seja, ele praticamente morreu congelado e, provavelmente (aqui eu estou supondo), a poucos quarteirões de casa.
Seu corpo foi levado para o Texas, onde foi enterrado num cemitério para negros. E o homem que pedia, em suas canções, que mantivessem sua sepultura limpa, ganhou um túmulo sem nome ou qualquer tipo de identificação. Foi só em 1967 que um marcador histórico foi colocado no local (aproximado) de onde ele estaria.
Pouco, muito pouco, para o homem que mudou a história do blues.
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Nota: este texto possui menos músicas que deveria. Isso porque as músicas de Blind Lemon Jefferson na internet são uma enorme bagunça, muitas delas com títulos trocados e muitos covers. Caso você queria conhecer o trabalho dele ainda mais, sugiro que coloque as mãos nesse box com quatro discos.
Lonesome House Blues — Como todo blueseiro, Blind Lemon Jefferson adorava falar sobre corações partidos. Aqui, ele fala sobre a solidão que sente em Chicago, “onde o dinheiro será o meu crime”, indicando a perdição da cidade grande. Sobre a mulher que o abandonou, um verso genial: “se o seu coração não for de pedra, ele é de mármore”.
Jack O’Diamond Blues — A canção Jack O’Diamond é uma daquelas músicas folk sem autor conhecido, que se tornaram populares ao serem cantadas por trabalhadores de estradas de ferro que passavam o tempo livre jogando cartas — sua letra é sobre jogatina. Certamente hoje estaria esquecia se Blind Lemmon não tivesse transformado a canção em um blues extremamente gritado.
‘Letric Chair Blues — O desespero e a violência das letras de Blind Lemon são, em alguns momentos, insuperáveis. Aqui, ele se coloca no lugar de um condenado executado na cadeira elétrica, começando a canção pelo seu ponto de vista e mudando para o ponto de vista de sua namorada. No meio disso, um verso de arrepiar, em que ele explica que os as execuções acontecem a uma hora da manhã porque, como as luzes estão apagadas, a corrente elétrica é muito mais forte.
He Arose from the Dead — Apesar do título sombrio, trata-se de uma das muitas músicas gospel de Blind Lemon, que mostra um bom conhecimento da Bíblia ao narrar com detalhes a história da ressurreição de Cristo.
Bonus Tracks:My Buddy Papa Jackson — Trata-se de uma homenagem a Blind Lemon, gravada em 1932 pelo misterioso King Solomon Hill (cujo verdadeiro nome permaneceu em segredo e foi alvo de polêmica durante anos, até que fosse estabelecido como Joe Holmes). A letra narra a tristeza que o cantor sentiu ao saber da morte de seu amigo e a melodia é baseada em uma música do próprio Blind Lemon (Gone Dead on You Blues). Acreditava-se que essa canção estivesse perdida para sempre até que uma cópia fosse descoberta em 2002.
Blind Lemon Jefferson — Música sobre Blind Lemon (e com um clima sobrenatural) feita pela banda australiana Nick Cave & The Bad Seeds, em seu disco The Firstborn is Dead, de 1985.
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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai – pasmem – todos os sábados.
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