Se todo mundo quer se transformar, por que demoramos tanto para começar o trabalho sujo?

Nessa terceira conversa, listo alguns motivos: 1) não temos contato diário com o sofrimento, 2) falta confiança em nosso potencial e 3) ainda não nos cansamos completamente dos mecanismos que produzem confusão.

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Contato diário com o sofrimento

Adoro conhecer pessoas em momentos de crise. Parece que elas estão muito mal, mas repare: elas nunca estiveram tão abertas, disponíveis, atentas. Você indica um livro para uma pessoa bem-sucedida, ela não tem tempo. Você indica um livro para uma pessoa derrotada, ela lê em uma semana e liga depois agradecendo. Você a convida para silenciar e investigar a própria mente, ela vai. Ela precisa. Ela tem agenda. Ela tem a única urgência que vale a pena. O sofrimento é um aliado: ele reorienta prioridades, nos faz ouvir, nos abre para a realidade, nos obriga a olhar.

O problema é que se eu acompanho apenas a minha vidinha, pode ser que surjam crises apenas de cinco em cinco anos. É muito tempo para ficar confortável, fechado, ganhando algum joguinho antes da realidade bater na porta. O ideal seria viver todo dia em crise, sofrendo, em carne viva, mas isso é insustentável.

A solução é acompanhar mais vidas. Eu brinco que o objetivo é chegar no ponto de receber pelo menos uma mensagem por dia com alguma confusão. Melhor se der para marcar um café por dia, para ouvir melhor a história toda. Tem tanta gente sofrendo — é sempre mais do que a gente imagina, sempre mais. Não me refiro apenas a grandes tragédias, desigualdades sociais, doenças graves etc. Não me refiro a acompanhar o sofrimento mais grosseiro pelo noticiário. Estou falando de ciúme no namoro, competição no trabalho, ansiedade medicamentada, raiva, preconceito, controle, ausência de sentido, perda de tempo, tudo isso ali na esquina…

Se achamos que não estamos sofrendo, podemos nos lembrar das sementes de perturbação que guardamos: “Eu surtaria de um dia para outro se acontecesse o quê?”. E podemos ouvir mais o sofrimento ao redor: chegando mais perto daquele cara que tem um casamento invejável, se interessando mais pelas pessoas que ignoramos, escrevendo para aquela amiga das antigas, enfim, deixando cair a ficha: não há festa.

Se você cultivar uma intimidade diária com o sofrimento, seu e dos outros, não será uma opção apenas seguir deixando a vida nos levar. Você vai querer descobrir como seria viver sem tanta confusão. Não há combustível melhor para se emancipar.

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Nosso potencial de transformação

“Quem aqui acha possível superar 100% do ciúme pela raiz?”

Perguntei para cerca de 20 pessoas no curso “Resposta padrão para qualquer problema de relacionamento”. Ninguém levantou a mão.

Como é que vamos ajudar uma pessoa ciumenta ou com qualquer outra aflição se não conseguimos visualizar a pessoa e nós mesmos realmente livres daquela operação? Se o processo já é difícil, fica impossível quando sequer conseguimos imaginar sua possibilidade. Resultado: nunca começamos. E nos tornamos uma profecia que se autorrealiza.

É como se todos nós estivéssemos sofrendo de um problema coletivo, anterior às aflições: uma falta de confiança em nossa natureza livre, em nosso potencial de transformação. Talvez porque desde bebês só reagimos e reagimos e reagimos, sem nunca parar e aprender a não se identificar com vozes internas, pensamentos, aflições, jogos e bolhas que chamamos de “vida” ou “mundo”, urgências, impulsos e todo o nosso falatório contraído que chamamos de “eu”.

Ora, se antes de ser baterista eu não era baterista, e se depois de ser namorado eu vou seguir respirando como solteiro, minha natureza é livre de baterista e livre de namorado, justamente porque pode se tornar baterista e namorado. Se eu fosse mesmo alguma das minhas identidades, eu nunca poderia me tornar outra coisa. O problema não é ser você, o problema é você achar que você é apenas você.

Ainda que a gente não reconheça, nossa natureza não é ciumenta, não é ansiosa, não é desequilibrada, não é autocentrada, assim como o corpo não é gripado por natureza. Quando namoramos, tem algo em nós que não namora. Quando surtamos, tem algo em nós que não surta. Nossa natureza é livre e nunca foi limitada pelos seus condicionantes, assim como um espelho nunca chega a se tornar as imagens que reflete.

Essa descoberta não se faz olhando para a evolução de nossa espécie, para nosso cérebro, para nosso DNA, para os bebês, para doutrinas filosóficas, para teorias de psicologia, enfim, para qualquer coisa externa. Essa descoberta se faz olhando em primeira pessoa para a própria mente e para a vida cotidiana.

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Para aumentar essa confiança em nosso potencial, para olhar o ciúme, bater no peito e dizer “Sim, é possível atravessá-lo”, precisamos começar com alguma prática como shamatha (parar, repousar, relaxar e usar um foco para que a mente volte, de novo e de novo, deixando de reagir e se agarrar ao que surge) para aprender a não se identificar com os conteúdos da mente e começar a descobrir esse espaço mais básico, mais relaxado, mais livre, mais sábio, mais compassivo.

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Não vai dar certo

Nossa motivação para o processo de transformação vai crescer na medida em que desistirmos da operação usual de sustentar a energia manobrando condições externas, por meio de identidades, bolhas e jogos sutis que tentamos ganhar. Precisamos observar, de novo e de novo, como isso nunca funciona. Em nós e nos outros. O tamanho do buraco é muito maior do que imaginamos.

Para qualquer que seja sua busca de felicidade condicionada, guarde esse mantra no coração: não… vai… dar… certo… não… vai… dar… certo… não… vai… dar… certo…

Qualquer micro aflição, muito antes das crises e brigas e grandes sofrimentos, é um lembrete: de novo, estamos operando de modo condicionado, controlando e exigindo algo dos outros e da vida, o que nos deixa dependentes, medrosos, esperançosos, autocentrados, tensos, deludidos. Sofremos muito antes de sofremos.

Toda micro aflição é um convite para nos cansarmos logo e nos interessarmos por uma transformação radical. Não um remendo, não uma melhoria, não uma solução, não um aprimoramento para nos tornarmos pessoas melhores agarradas em histórias mais interessantes. Os remendos só prolongam a bolha. A pessoa não aguenta mais o trânsito, está quase vendendo o carro, quase mudando para perto do metrô e do trabalho… E aí chega o Waze. Ela se apaixona e segue feliz com seu novo joguinho.

Vamos admitir logo que estamos cansados?

Cansados de carregar o dia inteiro para dentro de cada noite, de trazer nosso passado por trás dos olhos, ano após ano, encardidos de certezas sobre a vida, acumulando experiências, incapazes de soltar e dizer para a pessoa que acabamos de encontrar: “Oi, prazer, acabei de chegar…”

Cansados de compartilhar frases de sabedorias que não sabemos praticar. Cansados de falar mal dos outros, sem reconhecer que vemos fora o que temos dentro. Cansados de tentar o caminho do controle, como uma mosca batendo no vidro, de novo e de novo, sem desconfiar que talvez não seja uma boa ideia condicionar o brilho de nosso olho ao movimento de outros olhos. Cansados de ser tão repetitivos, monotemáticos, tão nós mesmos.

Cansados de nos ocupar, como se relaxar fosse errado. Cansados de buscar o sucesso e temer o fracasso, não importa o quão refinado seja o nosso jogo. Cansados de ceder ao ciúme do outro, de fazer cafuné em seus hábitos negativos, de negociar com cada aflição que nos tiraniza. Cansados de aceitar migalhas de alegria.

Cansados de desejar tanta mediocridade para nós mesmos, como se fossem aspirações elevadas (“Que eu passe no concurso! Que eu me case! Que eu viaje bastante!”), quando poderíamos mirar no céu: “Que minha simples presença possa beneficiar mais e mais pessoas!” Cansados de confundir nossa bolha com a realidade, sem perceber que os seres não caminham pelo nosso mundo: cada um deles está no centro de um outro mundo. Cansados de reagir e reagir e reagir e reagir, sem nunca estalar os dedos. Cansados de se cansar tão facilmente.

Precisamos de um gesto radical para romper o loop de sofrimento, como o de Chögyam Trungpa, que virou até caligrafia na entrada de sua casa: um gigantesco e definitivo “Não” para nossa confusão autocentrada. O problema é que a gente não se esgota o suficiente — só 50% não leva à transformação. As coisas só tem o poder de nos cansar porque nós ainda não nos cansamos delas. Lembro nitidamente de uma tarde com o professor Alan Wallace, entre 250 pessoas, durante um retiro de 9 dias sobre shamatha, em 2010. Ele listou as causas desse desgaste sem saída até culminar com força, como se falasse em caixa alta, seco, preciso, cortante:

“BASTA!”

Como a gente se transforma?

Na próxima conversa, vamos começar a detalhar os processos que levam à transformação, para que a gente se aproprie e ganhe autonomia diante de tantas técnicas, métodos, livros, professores e professoras, enfim, para que tenhamos mais clareza do que precisa ser feito.

Seguimos o papo nos comentários.

* As fotos que ilustram esse texto são do grande Kazuo Ohno: sua dança nos faz parar.

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Gustavo Gitti

Professor de <a>TaKeTiNa</a>