Por muito tempo, se referia ao homem como um ser único, um modelo que abrangia todos os homens cheios de regras, normas e padrões que construíram esse homem que é o cara forte, viril, machão, que afirma seu valor no trabalho, honrado e sempre pronto para briga para defender sua posição, mas também é o homem bloqueado para emoções, que considera tudo o que é feminino negativo, mas sustenta esse “homem ideal”.

A antiga construção de masculinidade unica representada pela ilusão de "super homem" como homem ideal.

Com os avanços dos estudos feministas ao longo das décadas, alguns homens engajados nesse debate, que compreendiam suas responsabilidades na transformação do patriarcado como estrutura social, tentaram se organizar em apoio ao feminismo, e essa tentativa fez com que se pensasse sobre as diferenças de classe na expressão da masculinidade. 

Pensadoras feministas como Maxine Baca Zinn, Angela Davis e Bell Hooks apontaram como as diferenças raciais eram marcadores importantes, e que o poder não pode ser pensado apenas na diferença entre sexos. 

Homens brancos e negros tem atravessamentos e vivencias diferentes, homens ricos e pobres tem acessos e representações diferentes, homens héteros e homossexuais, e dentro disso, os homens trans também tinham interssecções diferentes. 

Para ficar mais claro, quando falamos sobre um modelo de masculinidade hegemônica, podemos pensar em grandes personagens do cinema, como Rambo, John MCclane de Duro de Matar, James Bond em 007, Martin Riggs em Máquina Mortífera, entre outros. O que há em comum entre eles é a virilidade, a resolução de problemas com base na violência, na maioria das vezes sozinhos contra o mundo, inclusive para lidar com as suas próprias questões. São homens que se bastam, e a maioria tem companheiros que são leais a eles até o fim, reforçando o que chamamos de pacto narcísico masculino, um homem sempre apoia e protege outro homem, mesmo que não o conheça a princípio.

O problema desse ideal único, hegemônico, que muitas vezes parece uma regra imutável, é invisibilizar outras existências, principalmente quando pensamos sobre masculinidade de forma a essencializar o caráter dos homens, ou  impor uma unidade falsa, afinal, os homens não são todos iguais. 

A partir disso, Raewyn Connell constrói o conceito de masculinidades hegemônicas e masculinidades subordinadas, ou subalternas. As masculinidades hegemônicas são aquelas que estão referenciadas na nossa cultura, ou seja, o macho alfa implacável, um super homem. E as masculinidades subordinadas ou subalternas são aquelas que existem, mas não alcançam o ideal de masculinidade, seja a representação de um homem sensível, que cuida da casa enquanto a mulher trabalha, um homem pobre, um homem negro – que pelo atravessamento do racismo não seja considerado homem ideal – um homem gay em que sua sexualidade lhe afastaria desse ideal de masculinidade, e a lista seguiria infinitamente. 

Connell trás esses conceitos justamente para evidenciar a pluralidade, entender a fluidez do que é ser homem e tentar fugir ao máximo da essência de normatividade que o termo "hegemônico" pode trazer, não existe apenas o homem branco e machão no topo da pirâmide, mas uma variedade de existências masculinas.

RW Connell deixa claro que o conceito de masculinidade hegemônica não deve ser entendido como algo que está acima ou é melhor que os outros, mas sim como um termo que evidencia uma certa dinâmica dentro do processo social.

É interessante pensar que nem todo homem será um James Bond, na verdade é muito provável que a maioria não seja, mas as masculinidades hegemônicas se sustentam como meta, como um objetivo a ser alcançado.

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Deseja-se ser o 007 e, por mais que dentro de uma análise socioeconômica isso seja pouco provável, sustenta-se e apoia-se esse ideal a partir do momento em que se constitui a masculinidade hegemônica como meta, a regra, e todos abaixo devem buscar isso. 

Não à toa, o discurso da meritocracia, por exemplo, onde se vende a ideia de que um homem pode vencer se ele se esforçar, encontra eco neste ideal de masculinidade. 

As masculinidades cúmplices são aquelas que dão apoio, que não ocupam o topo, mas concordam que “aqueles que são homens de verdade”. São os que sustentam privilégios e fingem não ver o comportamento errado do amigo, sustentando também a estrutura que esmaga as masculinidades subordinadas, através das violências e pressões sociais. 

É tão importante esse exercício de pensar a masculinidade como plural, porque precisamos entender a complexidade de todo esse cenário.

Para que você entenda a pluralidade, até o local onde esse homem nasce e cresce resulta numa masculinidade única: você que mora em São Paulo é formado, subjetivado, de uma forma; já o homem nascido em Pernambuco terá outras concepções. Por mais que compartilhem certos conjuntos de regras, o ideal de masculinidade hegemônica Paulistana tende a ser diferente do Recifense. A geografia também constrói masculinidades. Mas mesmo nessas diferenças, seguimos reproduzindo uma dominação hierárquica injusta.

As masculinidades subordinadas são aquelas que estão em relação às masculinidades hegemônicas, por exemplo, o patriarcado é essencialmente constituído por homens brancos, héteros e cisgenero. 

Qualquer homem que não se encaixe nessas características estará subordinado, subalternizado, em relação a esse homem hegemônico, porque não alcançará o topo do patriarcado, por mais que lute por isso. 

Perceba, mesmo dentro de um grupo de homens brancos, os que são fortes e bem sucedidos estão subordinando os que não o são, como os nerds, os que são magros e baixos. Ou quando falamos de um homem gay que esteja mais próximo do ideal masculino (ativo, forte, que não dá pinta) pode subordinar o gay que é afeminado, passivo, com características mais ligadas ao feminino e mais distantes do ideal masculino hegemônico.

Pense: qual é a possibilidade de um homem negro ocupar um lugar no patriarcado quando ele é marcado por séculos de opressão e uma sociedade estruturalmente racista? Não há possibilidade de se afirmar enquanto homem pelo viés de classe, a raça não pode ser modificada, e o gênero não é garantia de lugar. 

Dentro das masculinidades negras também há subordinações, aquele que é considerado o “negrão de tirar o chapéu, que não nega fogo” bem sucedido também subordina aquele que é franzino, desempregado, entre outros pontos.

Conversar sobre as diferentes masculinidades é compreender aonde nos encontramos nessa dinâmica social, não existe solução fácil para problemas complexos. Não é porque me encontro em uma situação de subordinação, que eu não posso estar subalternizando outro homem, por exemplo, as relações de poder mudam a todo momento, mas ter consciência delas nos faz melhores e com relações mais saudáveis com o mundo.

Não há como discutir masculinidades sem consciência social, porque reforça a desigualdade com alguns homens, em detrimento de outros, e isso certamente não é produtivo para sermos homens melhores e com uma melhor relação com o mundo. Quando consideramos as várias masculinidades, estamos respeitando a existência e aprofundando a compreensão de nós mesmos.

João Marques

Escritor, pesquisador da psicologia das masculinidades e questões raciais.