Arne Dekke Eide Næss foi um senhor impressionante. Um desses caras que você com certeza deveria conhecer.
Foi marido, pai, um habilidoso pianista, boxeador e montanhista durante sua vida toda (parte da qual morou numa cabana isolada nas montanhas da Noruega). Também um filósofo dos mais prolíficos, que tratou, entre outros temas, de lógica e interpretação da linguagem, debate, ceticismo, pragmatismo, comunicação e ecologia – desenvolveu a noção de Ecologia Profunda.
Morreu em 2009, aos 96 anos, dormindo.
Neste texto ele fala um pouco sobre sua visão de qualidade de vida. O tema obviamente interessa a todos nós, saibamos ou não disso, e este artigo pode nos servir como uma boa referência, um jeito bem inteligente de começar ou de continuar essa exploração.
O texto é relativamente denso, e queria agradecer a tradução linda que o Fabio Bracht fez pra nós em tempo recorde e numa só pegada. E agradecemos também ao The Trumpeter por nos confiar a tradução e publicação desse material em português.
O que é alta qualidade de vida?
É segurança contra fome e privações? Não. Mas a sensação de segurança contra fome e privações deve contar. É boa saúde? Não. Mas a sensação de estar bem de saúde deve contar. É estar frequentemente junto a bons amigos? Não. Mas a sensação de estar frequentemente junto a bons amigos deve contar. É ter dinheiro o bastante e uma boa renda? Não. Mas a sensação de ter dinheiro o bastante e uma boa renda deve contar. É ter acesso a arte? Não. Mas o prazer e uma apreciação positiva daquilo que se considera arte deve contar. É ter acesso a uma educação superior? Não. Mas a ausência de frustração e mágoa por não ter acesso a uma educação superior deve contar. Fadiga extrema? Não necessariamente. Se a vitória em algum esporte parece estar próxima, a fadiga extrema pode estar lá, mas não será sentida.
Duas pessoas podem estar exatamente em uma mesma situação lamentável, mas a qualidade de vida de ambas pode ser impressionantemente diferente:
Jack e Mac têm câncer e passam por um tratamento desconfortável, às vezes doloroso. Jack está deprimido, sente-se abandonado, seu espírito está fraco, não tem alegria, está na fossa, mal-humorado, desencorajado. Mac está inteiramente alegre, tem sua mente em paz e cheio de espírito. A diferença está na qualidade de vida, não em um dito estado objetivo.
O termo “qualidade de vida” está na moda, por isso surgem alguns usos conflitantes. Mais importante é um uso que torne o conceito em suas aplicações, bastante similar aos de padrão de vida. Nesta situação é preciso escolher e, evidentemente, é necessário um conceito que defina o mais consistentemente possível como alguém se sente, em vez de o que alguém tem ou o que alguém deve sentir, ou qual tipo de sentimentos podem ou devem ser esperados, e por aí vai.
Isso nos leva ao uso com o qual estou de acordo. É o uso adotado por muitos pesquisadores. Mas inconsistências são comuns e até certo ponto inevitáveis. Também há que se levar em conta a inevitável imprecisão e ambiguidade, e por último, mas não menos importante, a inevitável busca por testabilidade que depende mais ou menos de definições operacionais, ou às vezes mesmo dos sentimentos de alguém – meios mais ou menos indiretos não podem ser evitados.
Se uma pessoa está tranquila e se sente bem, isso pode induzir à complacência, frouxidão, negligência, falta de consciência do perigo, das consequências da ação ou da inação. Como "qualidade de vida" é um termo positivo, é natural entrar em inconsistências nestes casos e começar a dizer que a pessoa não tem realmente uma qualidade de vida alta. O conceito proposto não é o de que o que uma pessoa deve sentir é o que é relevante, ou que calamidades estão de alguma forma relacionadas à alegria.
Alguns exemplos ajudarão.
Por todo o ano de 1988 e 1989, o Sr. Jones se sentiu bem, contemplando o que ele chamava de sua "excelente saúde". Essa sensação somava à sua qualidade de vida. Então ele foi informado que esteve com uma úlcera crescendo dentro de si por todo esse tempo. Ou seja, ele estava errado. A sua sensação de ter boa saúde era uma ilusão, ele concluiu. Talvez pudéssemos dizer que ele se sentia com uma boa qualidade de vida, mas não que ele tinha uma boa qualidade de vida. Mas o sentimento dele era uma ilusão, ou a ilusão era a sua crença de que sua saúde estava bem? Mas por que a qualidade de vida deveria ser isolada dos sentimentos? Em muitos casos, nós podemos dizer que um certo sentimento positivo ou negativo não ocorreria se tivéssemos mais conhecimento. Precisamos de um conceito como qualidade de vida que registre como as pessoas realmente se sentem.
Outro exemplo: Um dia após um período em que se sentia seguro apesar da guerra, o Sr. Bernstein, um norueguês de fé judaica, acordou em 9 de abril de 1940 na Noruega e descobriu que o país estava sendo ocupado pelos alemães nazistas. Ele não se sentia mais seguro; sentiu uma grande preocupação em como sair do país, e estava com medo de ser preso e enviado para um campo de concentração. Seria correto concluir que, porque o Sr. Bernstein não estava realmente seguro na Noruega em 1940, a sua sensação de segurança não poderia acrescentar à sua qualidade de vida?
A resposta deveria ser: a sensação acrescentou, sim, ou, sendo mais específico: o conceitto mais frutífero de qualidade de vida é um que diria que a sensação de segurança do Sr. Bernstein acrescentou à sua qualidade vida. Mas a sua suposição implícita ou explícita de segurança contra a ocupação nazista se revelou completamente errada. O seu sentimento não estava errado e acrescentou à sua qualidade de vida, mas a suposição foi perigosa e infeliz. Ela somou à sua relutância em seguir o conselho das pessoas que insistiam para que ele saísse da Noruega. Alguns judeus noruegueses em 1940 e mesmo em 1941 sentiam-se seguros e ainda assim seguiram o conselho de seus parentes mais velhos ou com maior autoridade para deixar a Noruega. A sensação de segurança deles acrescentou à qualidade das suas vidas durante o tempo que duraram. Neste sentido, nenhuma consequência adversa se seguiu às falsas suposições nas quais o sentimento repousava.
Se tomarmos nota que o Sr. X, uma pessoa alegre, foi posto em uma prisão em um país quente, com grande desconforto relativo ao padrão de que costumava usufruir, seria esta dita condição objetiva suficiente para observarmos um decréscimo na qualidade de vida? Para Mahatma Gandhi, e milhares de outros, era um grande alívio ser posto na prisão.
É de grande interesse metodológico e, principalmente, político e filosófico, clarificar as relações conceituais entre padrão de vida e qualidade de vida. A grosso modo, o padrão de vida nos diz o que possuímos na vida, e a qualidade de vida nos diz como você se sente na vida.
Depois desse discurso introdutório é hora de nos atermos aos fatos: o que já foi realmente feito na pesquisa sobre qualidade de vida como uma disciplina estritamente empírica de ciência social? Eu farei uso principalmente de uma excelente pesquisa empírica. Ela termina em uma lista de referências com cerca de 100 livros e artigos, uma pequena porcentagem, claro, da literatura total a respeito, mas um bom guia para leitura de aprofundamento.
Deixe-me começar com uma pesquisa obviamente útil de um caráter bastante limitado. Por anos houve uma questão controversa sobre qual das duas desprazerosas terapias (química ou por radiação) era a pior para as pessoas sofrendo de câncer inoperável no pulmão. A questão era de enorme importância para essas pessoas, e também para as próximas a elas, que diariamente estavam cientes do seu sofrimento. A dúvida torturante estava sempre presente: "Talvez o outro tipo de terapia seja menos contrariante? Por que os médicos não sabem dizer?"
Foi iniciado um estudo sobre qualidade de vida. Por longos períodos de tempo os pesquisadores relataram tanto a situação somática quanto as respostas dos pacientes sobre como se sentiam. Eles focaram em variáveis como depressão, coragem de seguir a vida, respeito próprio, confiança e solidão. A construção das perguntas foi padronizada e a maioria delas era indireta, ou seja, não do tipo "Você se sente deprimido?" A resposta a essa pergunta básica aconteceu nesse estudo de ser bem simples: nenhuma diferença estatisticamente significativa. A importância dessa conclusão aparentemente desinteressante foi clara: não havia nenhuma razão geral para adotar uma ou outra terapia, do ponto de vista da qualidade de vida. A conclusão simplificou as decisões práticas em alguma medida.
A concentração em sensações e sentimentos, de um modo geral, não implica que termos que não se referem diretamente a como alguém se sente devam ser evitados a todo custo. "Coragem de seguir a vida" não é um termo usando em investigações sobre padrão de vida, mas ele pertence à pesquisa de qualidade de vida apesar de "coragem" não ser um sentimento. A falta de coragem para seguir a vida é considerada sintomática de depressão, um estado básico negativo com uma cor emocional negativa inevitável. Respeito próprio como respeito próprio, um sentimento de respeito pelo que alguém se é, também pertence ao vocabulário de como alguém se sente. Essa última expressão é útil porque abrange mais do que sentimentos. A confiança pode ser vista como um estado mental que pode ser perfeitamente habitual e possivelmente desprovido de sentimentos. Para aqueles menos certos de si mesmos, uma ocasional confiança completa é um componente positivo da qualidade de vida.
Uma análise mais próxima abre ricas fontes de reflexão e pode somar ao conhecimento próprio de alguém.
Os projetos médicos pertencem a uma ampla classe de avaliação de qualidade de vida de tratamentos. Milhares de procedimentos terapêuticos são planejados e implementados com grandes custos em nossas sociedades ricas. Frequentemente eles permitem alternativas, e isso causa discussões sobre as suas futuras melhorias, manutenções ou decréscimentos de qualidade de vida das pessoas afetadas, a curto e longo prazo. Quando um tratamento envolve considerável interferência física e mental, ocorrem discussões intensas sobre se o efeito desejado foi obtido ou não. Uma das perguntas básicas é "Como o paciente se sente agora?" Estimativas diferentes e mutuamente incompatíveis são frequentes. Nessa situação a pesquisa de qualidade de vida é uma ferramenta indispensável para trazer um pouco de dados empíricos metodicamente coletados à discussão. Às vezes o resultado parece desinteressante: as pessoas afetadas não se sentem nem significativamente melhores ou piores. Um novo procedimento, ou reforma do antigo, poderia ser usado. Mas às vezes é confirmada uma clara diferença, e a prática é adaptada às descobertas da pesquisa de qualidade de vida.
Alguns projetos interessantes de pesquisa tratam da influência de substanciais aumentos de renda. Ao menos por algum tempo depois do aumento acontecer, as pessoas foram negativamente afetadas. Elas se sentiam piores! Fatores possíveis: separação e divórcio, mais stress em geral ou um trabalho mais estressante, mudança de lar, vida mais complicada, perda de antigos amigos.
Um grande número de projetos de pesquisa tratam dos sentimentos resultantes de diferentes níveis de renda.
Estar claramente à frente da média geral é uma fonte de satisfação. Isso é, estar à frente daqueles no ambiente social no qual alguém está inserido e traça comparações, qualquer que seja o nível geral do padrão de vida material. Na Noruega, houve crescimentos significativos dentro de cinco períodos 1960–65, 1965–70, (…) 1980–85. Houve ao menos cinco degraus sucessivos de melhorias no padrão de vida. As pessoas significativamente à frente da média 1960 estariam, se mantivessem sua qualidade de vida naquele nível, bem abaixo dos padrões de vida de alguém com padrão de vida médio que se movesse para o próximo nível. Pessoas que em 1985 estivessem abaixo da média e se sentindo mal com isso, viveriam com um padrão material de vida muito maior do que aqueles que, em 1965, ou mesmo em 1975, estavam satisfeitos por estarem à frente da média. Os sentimentos ruins, a baixa qualidade de vida, podem portanto persistir apenas de muitos ganhos nos chamados padrões objetivos.
Em suma, a pesquisa de qualidade de que trata de níveis de renda confirma que é o nível socialmente relativo que conta para a maioria das pessoas em países ricos, e não o nível absoluto; ou seja, o que conta é o que as pessoas têm em relação às pessoas no seu ambiente social, não apenas o que elas têm.
O vasto aumento no consumismo privado em países ocidentais ricos, ao menos desde 1960, tem sido uma grande fonte de poluição e de declínio nas condições de vida globais em geral. Conclusão: o estabelecimento de um nível de padrão de vida significativamente abaixo do presente nos países ricos pode não reduzir a qualidade de vida. Mas haverá um período de transição no qual o prospecto de uma queda no padrão, ou a queda em si, seria uma fonte de baixa na qualidade de vida. Velhos e estimados hábitos, ainda que ruins, não são alterados sem alguma dificuldade.
Eu suponho que exista um desejo sério nos países ricos de criar condições gerais favoráveis à alta qualidade de vida. Portanto, a necessidade de saber o mais claramente possível o que causa um aumento na qualidade de vida, e não apenas no mero padrão de vida, e progresso econômico, não apenas mero crescimento econômico per capita.
Se um por cento do dinheiro usado para descobrir as preferências humanas reveladas no mercado fosse usado em pesquisa de qualidade de vida, isso tornaria as pessoas mais cientes da possibilidade de políticas mais ecologicamente responsáveis sem diminuir o que elas obviamente estimam: a alta qualidade de vida.
A educação de adultos é central e exige a mobilização de universidades. O panorama para um decréscimo do padrão de vida material nos países ricos é melhor se pudermos persuadir uma minoria considerável de que a qualidade de vida é diferente, e mais importante para as suas vidas, e especialmente as dos seus filhos, do que mero alto padrão material. Uma das coisas que precisa ser feita é informar ao público que o diálogo sobre qualidade de vida não é mero bate-papo entre românticos e idealistas, mas sim assunto de pesquisas sérias.
The Trumpeter
ISSN: 0832-6139
Volume 21, Número 1 (2005)
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