Meu terapeuta me disse uma vez que toda questão mal resolvida acaba voltando.
Você não sufoca, esconde ou esquece. Passa-se um, dois, sete anos e lá está ela de novo: a mesma questão. Com outra roupa, outro cabelo, outros olhos, mas a mesma. bem na sua frente, pedindo para você dar um jeito nisso.
Pois bem.
Há 12 anos eu me coloquei na seguinte bifurcação: ou seguia a carreira de guitarrista, ou começava meu estágio em uma agência de propaganda. Não foi uma decisão tranquila. Os dois lados eram tentadores.
No lado da propaganda, eu havia conquistado a única vaga de estágio na equipe de criação da Age, uma das agências mais promissoras da época. No lado do som, minha banda havia acabado de ser indicada como Banda Revelação no VMB, da MTV Brasil. Era uma banda de rock alternativo chamada Tchucbandionis, e tínhamos como tecladista o lendário P.A., ex-integrante do RPM, famoso pelo uso de drogas na década de 80 e por uma overdose dentro de um avião indo para Los Angeles, após cheirar cocaína e beber um vidro de perfume no duty-free.
Como se não bastasse esse pseudo-sucesso do “Tchuc”, eu também havia acabado de ser convidado para fazer uma turnê com ninguém menos do que os Titãs. Mentira. Era o Sidney Magal. Tinha acabado de ser convidado para tocar guitarra na nova turnê do Sidney Magal. Sim.
Nessas horas, o que um garoto de 19 anos faz? Ele para, pensa, conversa com os pais, pensa de novo e, finalmente, caga tudo.
Ele sai da banda, ele se recusa a tocar o Conga la Conga, e decide virar um redator publicitário.
Doze anos depois, lá está ele – o esforçado redator publicitário, trabalhando em uma das agências mais criativas do país, de camisa para dentro, sorrindo para chefes e clientes feito vereador em época de campanha. Após uma longa reunião, ele se olha no espelho e vai até a janela. De longe ele vê um pica-pau. O pica-pau vem voando, se aproximando cada vez mais. E não é que o pica-pau pousa em seu ombro e pergunta: E aí, fofolete? Tá feliz?
O divertido pica-pau começa a bicar sua cabeça e não para mais. Era minha questão mal resolvida, de volta. E não estava para brincadeira.
Durante uma semana, fiquei sem dormir. Havia vendido mais da metade dos meus instrumentos, dado outra metade e emprestado o resto. Tinha só um violão baratinho comprado nas Casas Bahia de Campos de Jordão. Ficava arranhando as cordas ao lado do meu pica-pau, que continuava perguntando: e então, sorridente redator, você é feliz? Ou esse sorriso é de agonia?
Se tornou mais forte do que eu: comprei duas passagens para Nova York, uma para mim e outra para minha mãe. A Dona Sandra sempre teve vontade de conhecer NY. Fui na quarta-feira, sem avisar ninguém. Sumi do lugar. Cheguei lá e, no mesmo dia, corri até a Rivington Guitars, uma loja perto do East Village, que vendia o violão dos meus sonhos: um Martin D-28 de 1976. Voltei no sábado já compondo as músicas.
Decidi no hotel que seria tudo em português. Afinal, se eu sonhava, comia, falava, e xingava em português, não fazia sentido querer pagar de gringo. Comecei a ir atrás da minha verdade. Precisava correr atrás do tempo perdido. Quando eu voltei, fazia as letras na hora do almoço e os jobs da agência durante o dia. Uma semana depois era o contrário: os jobs da hora do almoço e as letras durante o dia. Compus 97 músicas, escolhi 14 e gravei 11.
Link YouTube | Um trecho de uma delas, nesse ensaio.
Só faltava um nome. Foi aí que eu lembrei: com uns sete ou oito anos, eu havia montado uma banda imaginária que fazia dublagens do Kiss para os meus pais e avós. Eu era o guitarrista principal, e um tal de Mori era o baixista imaginário que tocava ao meu lado. O que eu não sabia era que o pica-pau estava na platéia. E ele já sabia de tudo. Era o começo do Faria & Mori.
Após o disco, o projeto Faria & Mori virou banda, com músicos da pesada de São Paulo. Virou clipe e site também. Acabamos de tocar no Rio de Janeiro, num especial de bandas alternativas do Multishow. Fomos chamados para fazer um especial no Popload Session, do Lúcio Ribeiro. O clipe foi parar na MTV UK. No show de pré-estreia, 197 pessoas saíram de casa numa terça-feira às onze e meia da noite para ver a banda. Não é um estádio, mas são 197 pessoas.
Ninguém sonha em ser gerente da sub-regional de uma conta de eletrodomésticos, redator-chefe de uma conta de shampoos anti-caspa ou diretor de mídia de uma conta de automóveis. As pessoas sonham em ser astronautas, bailarinas, jogadores de futebol e guitarristas. Ou, no caso do Mori, baixista. Por isso eu e ele resolvemos tentar. 🙂
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.