Olhe para o lado. Faça um passeio pela sua vida e responda de forma honesta: quantos homens você tem como exemplo que fogem às regras que nos disseram que eram intrínsecas à masculinidade? Com quantos homens você convive que expõem seus sentimentos abertamente, que não ficam angustiados por não serem os provedores da família, que não se gabam na mesa de bar da quantidade de mulheres que pegaram ou que não reproduzem aquele comentário homofóbico?
Novos tempos se anunciam. Estamos construindo, no agora, uma masculinidade mais benéfica — para todos. É uma construção que requer muitas mãos e braços, mas que já está acontecendo. É só reparar e ver.
Como cineasta, aprendi a esticar o olhar para além — além das câmeras, além das cenas, além do óbvio. A espreitar aquilo que está sendo dito sem palavras. Com Mineirinho foi assim. Por detrás do campeão mundial da elite do surfe, vi Adriano de Souza. Nele, uma masculinidade diferente, ainda mais para um meio tão dominado por homens.
Das ruas da favela de Santo Antônio para o mar: foi assim que Mineiro fugiu do destino de tantos outros meninos de sua idade — o tráfico de drogas. Levando a marmita para seu irmão mais velho, que era militar, via sempre ao fim da rua a praia. De lá, do posto policial, enxergava crianças e adolescentes numa escolinha de surfe. Pirata, o professor, era um mito: com apenas uma perna, surfava ondas perigosíssimas e ensinava aos pequenos sua arte. Tomou coragem e foi até ele. Perguntou se poderia participar, mas não tinha dinheiro. Pirata o acolheu, então, como bolsista. O irmão ficou preocupado, mas, vendo o caçula realizado, aprovou a empreitada do então menino de 10 anos.
Um tempo depois, Adriano ficou sabendo que alguém estava vendendo uma prancha usada, um toco velho que, para ele, era quase uma miragem. Perguntou ao irmão se poderiam comprá-la. R$ 15 reais era o preço da prancha, o equivalente a 10 almoços, disse o irmão. Mais uma vez, olhando para Mineirinho e vendo que havia, ali, um desejo genuíno de estar no mar, cedeu.
10 almoços. A economia que a família teve de fazer para que o campeão mundial tivesse sua primeira prancha.
Em 2016, estive com ele por 10 dias, no Guarujá, em Florianópolis e no Tahiti. Durante esse tempo, com apenas uma 16 milímetros sem telas externas, baterias extras e steady cams, estávamos eu e ele. Filmmaker e lenda.
Nas imagens subaquáticas, eu completamente submerso, Mineirinho não me via: surfava sozinho, feliz, completo — como se fosse só ele e o oceano, numa relação tão íntima que espanta os mais desavisados e não acostumados com sua poesia. Desse tempo compartilhado, nasceu o curta “O resto é mar”, uma história de surfe, mas também de vida.
Mais à frente das manobras inacreditáveis, da presença de espírito em grandes competições e do título no WCT, maior campeonato de surfe do mundo, Mineirinho carrega muito do menino persistente, apaixonado e obstinado.
Adriano é a lembrança que mesmo quando dizem não, ainda assim é possível.
E esse filme é um lembrete: que sirva para que não façamos dele uma exceção, mas que olhemos para as realidades desprivilegiadas e possamos fazer sair de lá mais atletas, mais artistas, mais médicos, acadêmicos, engenheiros.
Porque, já diria Caetano, gente é feita pra brilhar, não para morrer de fome.
Que os homens de amanhã não precisem economizar dez almoços para realizar seus sonhos. E que, assim, sigamos construindo outras masculinidades. Para quem sabe na próxima vez que alguém fizer a pergunta lá do começo do texto para você, os exemplos que você se lembre já tenham multiplicado.
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