Nas últimas semanas, o mercado editorial brasileiro viu uma velha polêmica voltar à tona.
As biografias não autorizadas devem ou não ser liberadas para o público? Os fãs de determinadas personalidades midiáticas têm ou não o direito de saber mais sobre a vida de seus ídolos?
De um lado, um exército bastante poderoso de artistas brasileiros é contra a liberação. Por outro, os biógrafos e o público clamam por mais liberdade de expressão e de acesso à informação. Para tentar entender melhor essa polêmica, vamos levantar alguns argumentos.
O mercado editorial brasileiro precisa das biografias
O Brasil possui um problema bastante antigo no que diz respeito à literatura. As pessoas não leem ou leem muito pouco.
Na última pesquisa feita pela Instituto Pró-Livro, o número de livros lidos em média por cada brasileiro diminuiu e alcançou a faixa de quatro ao ano, considerando leituras que não necessariamente tenham sido completas.
Agora, é importante destacar outro ponto e, para isso, será necessária uma rápida visita aos sites ou revistas que apontem semanalmente as listas dos livros mais vendidos no Brasil. Nelas, é curioso verificar que cerca de 90% dos livros nacionais — ou seja, feitos por autores nacionais — são de não-ficção.
Considerando que as biografias se encaixam no quesito não-ficção, a liberação das biografias no Brasil poderia aumentar substancialmente a quantidade de leitores.
Para um país que lê pouco, esse não é um luxo facilmente dispensável.
A lei
Para que publicações biográficas sejam levadas ao público hoje no Brasil, elas precisam se adequar ao que o artigo 20 da lei 10406/02 diz.
“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”
Sendo assim, os biógrafos até podem fazer entrevistas, pesquisar sobre o tema e conversar com o próprio biografado. Porém, se, mesmo depois de publicado o livro, a personalidade se sentir prejudicada por algum ponto específico, sua comercialização terá que ser interrompida, gerando prejuízo para o biógrafo e, consequentemente, para a editora, que investiu uma grana na publicação.
Por outro lado, os biografados argumentam que, sem essa proteção, suas imagens ficarão desguarnecidas e qualquer absurdo escrito nos livros poderá prejudicar sua “honra” e “boa fama”.
Ocorre que a construção jurídica brasileira tem maturidade suficiente para resolver — posteriormente — quaisquer contendas que venham a ocorrer por conta de calúnias, difamações e injúrias.
O que quero dizer com “posteriormente”? Simples.
Se uma pessoa ataca a outra com palavras e, no meio delas, conta mentiras que afetem a reputação da vítima, então ela está cometendo um crime, segundo o Código Penal Brasileiro em seus artigos 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria). E, por estar cometendo um crime, é passível de responsabilidade tanto penal quanto civil.
Nesse caso, fica descaracterizada a necessidade de mais um termo que proteja a imagem das pessoas, quando o próprio Código Penal Brasileiro já tem essa prerrogativa. E foi nesse ponto que a ANEL (Associação Nacional dos Editores de Livros) tocou quando entrou com um pedido de inconstitucionalidade para o artigo 20 da lei 10406/02.
Contudo, algo mais grave afeta os direitos das editoras. É a parte final do texto do artigo, que fala: “se se destinarem a fins comerciais”.
Esse trecho é bastante problemático para as editoras no Brasil, pois forma uma espécie de julgamento antecipado quando o assunto é a publicação ou não das biografias. Com base nesse trecho, o biografado — ou sua família, se já estiver morto — tem o direito de acabar com a comercialização do livro se considerá-la ofensiva, sem prejuízo qualquer de indenização para aqueles que gastaram muito tempo pesquisando ou para aqueles que fizeram o investimento, nesse caso as editoras.
É importante ressaltar que, muitas vezes na história, principalmente quando o assunto é comunicação e expressão, julgamentos antecipados previstos em lei foram associados à censura. Quando isso acontece, apenas biografias autorizadas — também chamadas de “chapa-branca” — podem ser publicadas e tudo fica dentro do politicamente correto.
Tomemos um exemplo que o Daniel Lameira, editor da Novo Século, disse em seu Podcast do Nariz, um site especializado no mercado editorial e no mundo dos livros. Nele, Daniel cita um exemplo hipotético da biografia do Hitler, figura considerada, para a maioria das pessoas como um dos monstros genocidas do século XX.
Dentro da regra do artigo 20 da lei 10406/02, se um biógrafo brasileiro quisesse escrever um livro contando a história do Hitler, teria que transformá-lo quase numa fada de bondade, pois dificilmente seus descendentes permitiriam que fossem contadas as terríveis histórias que o transformaram numa das figuras mais temidas dos últimos tempos.
E a sua fama veio de onde?
Grande parte das pessoas famosas não construíram suas carreiras se escondendo em ilhas desertas e renegando o contato com o restante da sociedade. Cantores, atores, modelos etc. buscam, incessantemente, reconhecimento por seus trabalhos e, quanto mais pessoas conquistarem no percurso, maior vai ser o retorno.
Com uma construção profissional alicerçada sob tijolos de reconhecimento, é um pouco estranho que essas mesmas pessoas não queiram que suas vidas sejam conhecidas pelo público que tão fielmente os acompanhou durante anos. Os fãs desejam saber mais detalhes sobre alguns acontecimentos que envolvem seus ídolos e negá-los o acesso não é uma maneira cordial de lidar com suas vontades.
Acontece que muitos desses artistas e personalidades não querem que esses detalhes, apesar de verdadeiros, sejam expostos ao mesmo público que sustentou suas carreiras e enriqueceu suas contas bancárias. E não é no Arquivo Confidencial do Faustão (nada contra o programa dominical) que os fãs verão ou escutarão detalhes que não enalteçam a qualidade daquele determinado artista. Analisando de modo bem genérico, no fim, todos os que passam pelo programa sempre apresentam características positivas e grandiosas.
Não que não devesse. Mas nenhum ser humano é feito de glória e momentos de ascendência.
É mais ou menos isso o que acontece hoje no mercado literário de biografias no Brasil. As “chapas-brancas” autorizadas pelos artistas mostram apenas o lado interessante para eles. Escondem detalhes que, no passado, foram convenientes para suas carreiras.
Se, por exemplo, um artista colaborou com o regime militar durante a ditadura brasileira e isso fez com que sua carreira alavancasse, não é justo que agora, com a situação política diferente, ele queira esconder seu passado. O mesmo vale para o uso exagerado de drogas. Se o artista foi um conhecido consumidor de diversos tipos de entorpecentes, tendo inclusive sido internado em clínicas, é necessário que tudo seja mostrado ao público.
Os estudiosos de teorias políticas sempre dizem que, na base da democracia, reside o acesso a informação.
Sendo assim, ocultar detalhes da vida de artistas ou de personalidades previamente é, sim, uma forma de censura e isso é uma manifestação antidemocrática. Afinal de contas, as pessoas precisam saber que seus ídolos também cometem erros e que são humanos.
Tendo essas informações nas mãos, ele poderão escolher com mais sapiência se querem ou não continuar admirando determinada pessoa. Certamente, o conhecimento da verdade é melhor do que o conto de fadas das personalidades brasileiras.
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