Sétimo dos sete filhos dos imigrantes italianos Ferdinando e Emma Rubinato, nasceu, oficialmente, João Rubinato, em Valinhos, interior de São Paulo, no dia 6 de julho 1912. Contudo, assim como a maioria das coisas na vida deste incomum cidadão não rendiam homenagem à oficialidade, nem mesmo a data de nascimento o fez: foi alterada para 6 de agosto de 1910 para que pudesse trabalhar.

“Eu nasci em 1912, mas para trabalhar depois arranjaram um batistério. Pois é, antigamente era batistério, hoje é atestado de nascimento. Porque na fábrica não aceitavam [nascidos em 1912], então arrumaram um [atestado] de 1910 para eu pegar no basquete logo cedo, entendeu?”

Os livros de registro de Valinhos não corroboram a história, pelo contrário, confirmam a data de 6 de agosto de 1910. Para a filha trata-se mesmo de uma invencionice do pai, parte da caracterização de um personagem; personagem este que só seria batizado mais de 20 anos depois.

O caminho até Adoniran Barbosa

Pouquíssimo afeito à escola e membro de família numerosa, abandonou aquela e logo cedo começou a trabalhar, ajudando o pai na São Paulo Railway em Jundiaí, cidade próxima a Valinhos, para a qual mudou-se com a família. Ainda nesta cidade seria entregador de marmitas e varredor de uma fábrica.

Em 1924 muda-se mais uma vez com a família para a cidade de Santo André. Ali exerceu as profissões de tecelão, pintor, mascate, encanador, serralheiro, garçom, metalúrgico (profissão que aprendeu no Liceu de Artes e Ofícios) e vendedor. Permanece lá até os 22 anos.

Muda-se para São Paulo e mora numa pensão. João queria ser artista, tenta o teatro, mas é rejeitado; no rádio, fracasso repetido. Já compunha alguma coisa, dessa época são os títulos “Minha Vida se Consome”, em parceria com Pedrinho Romano e Viriato dos Santos (Verídico) e “Socorro”, em parceria com Pedrinho Romano.

Finalmente, em 1933, por acreditar que João Rubinato não era nome de sambista – ia além, atribuía seus anteriores fracassos justamente ao nome! –, adota o pseudônimo Adoniran Barbosa, com o qual ficou famoso e fez carreira. “Adoniran” era uma homenagem a um seu amigo de boemia que trabalhava nos correios, Adoniran Alves; “Barbosa”, uma referência a Luiz Barbosa, de quem João era fã.

Com os Demônios da Garoa (siga lendo para ouvir o que saiu daí).

Enfim, artista

Foi por meio do rádio que Adoniran conseguiu realizar o desejo de ser artista. Ainda no ano de 1933, depois de várias tentativas, garante o primeiro lugar no programa de Jorge Amaral interpretando o samba “Filosofia”, de Noel Rosa e André Filho, ganhando um contrato para apresentar um programa semanal de 15 minutos.

Fatura, em 1935, o concurso de músicas de carnaval realizado pela Prefeitura da cidade de São Paulo com a marchinha “Dona Boa”, que compôs em parceria com o maestro José Aimberê de Almeida no ano anterior; também foi a sua primeira música a ser gravada, por Raul Torres.

Ficou na Rádio Cruzeiro do Sul de 1935 a 1940. A convite de Otávio Gabus Mendes foi para a Rádio Record em 1941, de onde só sairia quando se aposentasse, em 1972. Aí, atuou em programas humorísticos e fez radio-teatro; junto a Osvaldo Moles criou nada menos que 16 personagens, dentre os quais Zé Cunversa, Moisés Rabinovic, Jean Rubinet, Giuseppe Pernafina, Mr. Morris e Charutinho.

No ano de 1945 estreia no cinema, em Pif-Paf. Atua em vários filmes, sendo que o talvez mais famoso foi O Cangaceiro, do diretor Lima Barreto, em 1953. Também participou de novelas, como A Pensão de D. Isaura, na TV Tupi.

Um samba caipira e paulista

Paralelamente a todas essas atividades, Adoniran continuou desenvolvendo o ofício de cantor e compositor.

Inicialmente se dedicou mais à interpretação de outros compositores do que a compor e interpretar as suas próprias músicas. Grava em disco a música “Agora pode chorar”, que fracassa.

A linguagem do samba de Adoniran é muito peculiar. A construção empregada retratava muito da linguagem paulistana, principalmente do Bixiga e do Brás. Escrevia sem se preocupar com a grafia e com a gramática. Letras tão coloquiais quanto a própria língua falada com a qual convivia. Consciente da linguagem pouco ortodoxa, dizia:

“Pra escrevê uma boa letra de samba a gente tem que sê em primeiro lugá anarfabeto.”

As composições tinham uma identidade inconfundível: São Paulo. A dinâmica paulistana estava presente em todas as suas músicas. Adoniran vivia e respirava – e amargava – São Paulo, cidade que era ao mesmo tempo lugar de arranha-céus e de barracões, passado e futuro dos progressos tecnológicos convivendo lado a lado; e claro, todas as consequências disso, como o crescimento descontrolado e o constante processo de marginalização das pessoas, dos mais pobres principalmente.

Retratava com humor e amor os dramas e misérias do cotidiano paulistano. É da realidade pulsante da cidade que ele extrai os elementos para a sua música.

Seu primeiro sucesso foi “Saudosa Maloca”.

Link YouTube | “E pra esquecer, nós cantemos assim…”

O grande sucesso de Adoniran se deveu em grande parte à parceria com o grupo, também paulistaníssimo, Demônios da Garoa. Eles se encontraram pela primeira vez por ocasião da produção do filme O Cangaceiro, cuja trilha foi composta pelo grupo. Em 1951, Adoniran compôs “Malvina”, os Demônios gravaram e com ela levaram o prêmio do concurso de músicas de carnaval daquele ano.

No ano seguinte repetiram a parceria e o feito com a música “Joga a Chave”, mas foi, sem dúvida, com “Trem das Onze” que a coisa ganhou proporções não imaginadas.

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A música já tinha sido gravada por Adoniran, mas não chamou muita atenção. Foi com a regravação dos Demônios da Garoa que o sucesso realmente explodiu. Hino informal da capital paulista e conhecida de todos até hoje, foi vencedora do concurso de músicas de carnaval no quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, em 1965.

Link YouTube | “Não posso ficar nem mais um minuto com você…”

Os Demônios ainda gravaram muitas outras músicas dele, como “Iracema”, “As Mariposa”, “Samba do Arnesto” e “Tiro ao Álvaro”. Apesar disso, apenas se tornou conhecido como cantor quando gravou um disco (LP) só seu, pela primeira vez, em 1973. Além dos Demônios, Adoniran ainda realizou parcerias com outros grandes nomes da música, como Elis Regina e Clara Nunes.

Há algum fato por trás das letras?

Algumas curiosidades permeiam certas músicas suas, como por que o Ernesto saiu sem avisar, se Iracema foi alguma namorada ou se ele costumava pegar muito o trem das onze para Jaçanã.

A verdade é que nunca houve um trem das onze para Jaçanã e nem ele morava lá. O último trem que saía da Tamanduateí chegava à estação Jaçanã, no máximo, às 21h30min.

Iracema não foi uma namorada e nem ninguém importante na vida de Adoniran. Ele se inspirou numa notícia que leu no jornal O Dia: uma mulher teria morrido atropelada a menos de um mês da data de seu casamento. E o acidente não foi na avenida São João, mas na Consolação.

Segundo Celso de Campos Jr., autor de uma biografia sobre Adoniran, a história que este contava para alguns amigos próximos era a de que Iracema foi um amor não correspondido. Um dia, cansado de não receber nada em troca, falou que iria matá-la; no dia seguinte teria aparecido com a letra da música e, mostrando-a a Iracema, disse: “Tá aqui ó, te matei”.

Link YouTube (versão original aqui) | Fala se não é uma história triste.

E o Ernesto, coitado, não saiu sem avisar, não morava no Brás e sequer organizou qualquer samba! Mas como o próprio sambista dissera ao amigo de longa data: “Arnesto, se não tinha mancada, não tinha samba”.

Assim funcionava a cabeça de Adoniran, se alguma situação fizesse sua campainha imaginária soar, se algo “desse samba”, samba dava. Só era preciso certa dose de “licença poética” ali e acolá e pronto.

Em homenagem à memória do compositor, levam seu nome, na cidade de São Paulo: um museu, que fica na rua XV de Novembro, um bar, uma praça, um albergue para desportistas no Ibirapuera, uma escola em Itaquera e uma rua no Bixiga. Há, ainda, um busto dele na “Pracinha do Bixiga”, a praça Dom Orione e em Jaçanã uma rua chamada Trem das Onze.

Vida pessoal e momentos finais

Nosso companheiro aqui não teve uma vida fácil. O trabalho nas rádios não se podia dizer amplamente reconhecido e pagava pouco, o lucro dos direitos autorais também não remuneravam grande coisa, Adoniran tinha que complementar a renda de alguma forma, para tanto se apresentava em circos.

Denuncia a precariedade da vida de cantor na música “Tocar na Banda”, de 1965.

Link YouTube | “Pra ganhar o quê? Duas mariolas e um cigarro iolanda…”

Casou-se duas vezes, a primeira com Olga Krum, com quem teve uma filha, Maria Helena Rubinato. O casamento não durou um ano. Em 1949 casou pela segunda vez, agora com Matilde de Lutiis, que o acompanhou até o fim da vida; com ela compôs algumas músicas e para ela escreveu “Prova de Carinho”.

Com o advendo da Bossa Nova, da Tropicália e da Jovem Guarda, foi gradativamente sendo esquecido e preterido pela rádio e pela televisão. Tal fato não passou despercebido, tanto que o registrou numa de sua músicas, “Já Fui Uma Brasa”, onde faz menção à Jovem Guarda:

“Mas lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro, tocava saudosa maloca.”

Grande apreciador da boemia não dispensava uma birita. Fumava. Os hábitos pouco católicos acabaram por lhe render um enfisema pulmonar. Por isso e pela idade já avançada, nos últimos anos não saía muito de casa e se dedicou a fazer trabalhos artesanais.

Corinthiano apaixonado, chegou a compor uma música em homenagem ao time do coração, “Coríntia (Meu Amor é o Timão)”. Faleceu em 1982, aos 72 anos, a apenas 19 dias da final do campeonato paulista. Morreu sem ver o time ser campeão pela 18ª vez.

A herança? Além de uma história simples e digna de ser contada e diversos sucessos musicais, legou-nos por volta de 90 letras inéditas que, devido a Juvenal Fernandes, escritor e amigo, receberam tratamento adequado por artistas como Luiz Vieira, Tom Zé, Paulinho Nogueira e Mário Albanese.

Hoje, Adoniran teria 100 anos, completados no último 6 de agosto, considerando a data não oficial, que acabou se tornando realmente o seu dia, Dia de Adoniran Barbosa, um brasileiro para se conhecer.

Referências:

Danilo Freire

Advogado que não lida bem com prazos. Estudante de Filosofia que tem déficit de atenção. Cadeirante, era ruim em matemática, calculou mal um mergulho e desde então <a>é tetraplégico</a>. No Twitter