Nota da edição: O PdH republica conteúdo elaborado pela Revista AzMina. Nossos principais propósitos ao trazer esse tipo de conteúdo são aproximar homens e mulheres de assuntos comuns a ambos, furar bolhas e amplificar debates.  

Como vocês sabem, domingo tem jogo de futebol, é de lei. Mas hoje, além do jogo, também tem dia das mães. E quem disse que os dois eventos não podem conversar?

Com isso em mente, trouxemos um texto escrito pela Renata Mendonça e publicado na coluna das ~dibradoras para a revista. 

O papo de que mulher não gosta de futebol continua existindo, já caiu por terra ou só ganhou novos formatos? Vem ver com a gente discutir isso. 

Afinal, vai que sua mãe quer de presente um ingresso para torcer pelo time do coração no estádio e você tá marcando bobeira 😉

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Foto: Bruno Teixeira Rolo

Cresci achando ser uma criança normal, até que a ousadia por um gosto peculiar me fez supostamente “diferente”. Foi por volta dos 8 ou 9 anos que eu passei a gostar de sentar na sala aos domingos ao lado do meu pai e do meu irmão para ver jogos de futebol. Eu não sabia, mas esse simples hábito me diferenciaria para sempre.

O gostar de assistir me fez gostar de torcer — e, quando você torce, você cede um pouco da sua vida àquele clube. Passa horas falando dele, discutindo com os outros sobre ele. Era para ser apenas mais uma característica minha o “gostar de futebol”. Do tipo: “Renata é uma criança feliz, gosta de Português, de História, de futebol”. Mas eu sou menina. E aí o “gostar de futebol” virou estigma. Virou ousadia. Virou uma afronta aos meninos, que jamais poderiam acreditar ou aceitar que eu poderia entender alguma coisa daquilo.

Corta. Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai decidiu ir a um jogo do São Paulo, nosso time do coração. A gente morava no interior, então ir ao estádio era uma viagem. Ele foi e levou meu irmão. Não me convidou. Porque eu era menina, ele nunca imaginou que eu pudesse querer ir a um jogo de futebol, foi o que me disse — ok, a primeira parte da frase é minha, foi a única explicação plausível que eu encontrei anos depois para esse não-convite.

15 anos depois daquele não-convite do meu pai, foi a minha vez de convidar a família a ir comigo ao estádio

Depois da maior bronca que meu pai poderia levar de uma garota de 12 anos, ele escolheu outro jogo para irmos e, aí sim, viajamos os três. Foi amor ao primeiro passo na arquibancada. Ali eu soube que jamais deixaria o futebol.

Fui crescendo e, quanto mais crescia, mais “ousada” eu ficava. Agora eu queria participar dos debates sobre futebol no colégio. E quando eu falava sobre um jogo, criticava um jogador, reclamava da opção tática do técnico, vinham os olhares desconfiados a me encarar. “Você não entende de futebol.” Seguidos das perguntas: “Mas, então, vamos lá, me diga o que é impedimento? Escala aí o São Paulo de 1991? (…)”.

Não lembro quando foi a primeira vez que respondi essas perguntas, mas respondi. E respondia sempre. A gente até fica acostumada com elas, porque surgem em toda e qualquer situação. Na escola, com os amigos, com desconhecidos, com o taxista até. Eu respondia com ar de orgulhosa por saber responder, por “dar o troco” a eles — sem saber que eu não devia nada, afinal.

Mas aí um dia fiquei pensando: será que eu sempre vou ter que responder essas perguntas quando quiser falar de futebol? Vai. Sempre. Até que você mesma resolva dizer chega.

Que chato é gostar de futebol assim, né? Mas eu continuava gostando, cada vez mais.

Corta. Aos 17 anos, eu quis comprar a minha primeira camisa do São Paulo — cansei de usar as gigantescas do meu irmão mais velho. Fui à loja, e a primeira frustração das incontáveis que viriam dali em diante. Não tem camisa feminina. Tudo bem, eu compro a PP masculina, grande, largona, no joelho.

Foi só com 20 anos que consegui ter minha primeira camisa do São Paulo do meu tamanho, que honra! Dá até mais gosto de torcer. Mas logo eu quis a camisa comemorativa do título de 2006 no Brasileiro e não tinha feminina. Poxa, não, não vou comprar essa gigante masculina. E aí eu quis comprar a do goleiro, Rogério Ceni, maior ídolo do meu clube. Não, também não temos a de goleiro feminina. Ok, comprei infantil, era o jeito.

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Já perdi as contas da quantidade de vezes que fui a uma loja disposta a gastar mais de R$ 200 em uma camisa do meu time e saí dela frustrada por não encontrar nada do meu tamanho. Por muito tempo, eu aceitei isso, comprei as masculinas, as infantis, as que tinham. Afinal, torcer era assim mesmo, ossos do ofício.

Quer dizer, ossos do meu ofício, de mulher. Porque se eu fosse um cara, eu teria 50 opções de camisa para comprar, eu não precisaria responder um quiz pra falar de futebol, eu poderia ir ao estádio sem ouvir assovios ou gritos de gostosa.

E, com o tempo, fui percebendo que o problema que eu tinha era o mesmo problema de outras milhões que, iguais a mim, só queriam poder torcer pelos seus times, como qualquer homem o faz. E que a frustração que eu vivi em 2007 ao não encontrar uma camisa do meu tamanho continua igual em 2017 para as torcedoras de todos os times.

Na semana passada, o Corinthians anunciou seu novo uniforme 2 em homenagem aos 40 anos do histórico título de 1977, o fim da fila. Mas não vai ter modelo feminino, “porque não tem demanda”, eles dizem.

Do lado esquerdo, a camisa comemorativa lançada pelo Corinthians; do direito, a resposta da Nike às reivindicações das torcedoras.

O Flamengo também anunciou seu novo modelo em homenagem à camisa usada pelo timaço da década de 1980. Mas o modelo feminino de nada lembra o masculino. Esqueçam a gola, os botões, as mulheres vestem apenas um decote na camisa, esquecendo a carga histórica que o novo modelo carrega.

Uma amiga flamenguista desabafou ao ver os novos modelos femininos, com a lista limitada de tamanhos que os acompanha: “Desde os meus 15 anos eu tento comprar uma camisa feminina. Nunca consegui”.

A opção se restringe ao decote, ao tamanho G que mais parece infantil. No desespero, ela chegou até mesmo a comprar um cachecol do Flamengo, em pleno Rio de Janeiro 40 graus, para poder usar algo que a identificasse como torcedora. “A gente quer gastar com o clube, mas sequer tem essa opção”, disse.

Do lado esquerdo, a camisa masculina lançada pelo Flamengo; do lado direito, o modelo feminino.

Poderia citar aqui infinitos outros exemplos. As camisas rosas, que são sempre a primeira opção quando o intuito é “agradar mulheres”. Sem pensar que elas gostam de futebol pelo mesmo motivo que eles — para admirar seus ídolos, para vestir a camisa deles. Não queremos uma camisa que nos separe, queremos a camisa que nos una no amor pelas cores do nosso escudo.

A camisa rosa pode ser uma opção extra, jamais a opção única.

Mas aí virão as desculpas sobre demanda, a falta de interesse das mulheres no futebol, a ausência de “quórum” para a produção dessas camisas. Engraçado, uma pesquisa de 2012 da Pluri Consultoria mostra que 68,9% das mulheres brasileiras torcem por algum time de futebol. Isso na época, então, já dá para imaginar que esse número cresceu em cinco anos.

Só de flamenguistas, são mais de 14 milhões. De corintianas, outros 11,7 milhões. O levantamento mostra que há mais de 67 milhões de torcedoras em todo o país, ou 67 milhões de pessoas ignoradas pelos clubes.

Conforme mostramos aqui, ser mulher e gostar de futebol é uma saga. É remar contra a maré. É responder quiz toda vez que quiser abrir a boca para falar de futebol. É ir à loja e não conseguir comprar uma camisa do seu time que lhe sirva. É ter de lidar com assédio o tempo todo no estádio e fora dele. E tudo isso é muito chato, mas, mesmo assim, a gente gosta.

Já imaginou se pudesse ser um pouquinho mais fácil? Já imaginou quantas outras milhões de mulheres poderiam se juntar a nós se não fosse tanto preconceito? E quantos milhões os clubes poderiam ganhar se demonstrassem o mínimo de preocupação com elas?

Aquela menina de 12 anos ainda espera pelo dia em que será convidada a viver o futebol ao lado dos homens, sem distinção.

AzMina

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