– Senhor?
– Pois não?
– Adão na linha dois.
– Pode passar.
– Sim, Senhor. Só um minuto.
– Alô?
– Mais ou menos.
– O que houve?
– O Senhor conhece um bom advogado?
– Advogado?
– Isso.
– Para que você precisa de um advogado?
– Acho que eu vou ser processado pelos macacos. Ontem recebi uma folha de bananeira na minha caverna. Era uma notificação judicial. Eles estão pensando em me processar.
– Mas por qual motivo?
– Porque eu comecei a escrever uma biografia sobre eles.
– Escrever o quê?
– A biografia dos macacos. Não é o Senhor que sempre diz que o que acontece aqui embaixo será extremamente importante na história?
– Sim.
– Estava pensando sobre isso e pensei em contar a história dos animais aqui embaixo. E decidi começar pelos macacos. Afinal, tudo o que acontece aqui embaixo está relacionado a eles, de um jeito ou de outro.
– Bem, isso é verdade.
– Então comecei a colher alguns depoimentos. Mas os macacos descobriam que eu estava fazendo isso e vieram falar comigo. Eles querem ler as folhas de bananeira antes dos outros animais.
– Como assim?
– Dizem que precisam aprovar tudo que esteja escrito. Eu não concordei.
– Fez bem. O que eles responderam?
– Nada. Um gorila me deu um murro na boca e eles foram embora. Aí, ontem, chegou a folha de bananeira escrita pela advogada deles. E logo depois ela veio falar comigo.
– Mas quem é a advogada deles?
– A serpente. Ela falou que qualquer coisa que for escrita sobre os macacos precisa ser aprovada por eles ou as folhas de bananeira serão confiscadas. Eu disse que tenho o direito de escrever a verdade. Por exemplo, o Senhor sabia que tem um babuíno que odeia os outros macacos secretamente?
– Não.
– Três animais me confirmaram isso. Uma águia, um gambá e um coelho. Dizem que ele está sempre reclamando dos outros macacos, mas não pode fazer nada, porque senão é expulso do bando.
– Mas por que você escreveria isso?
– Porque isso diz algo sobre os macacos. Isso mostra que os macacos não são tão unidos como falam. É uma informação importante para o resto do Paraíso.
– Concordo.
– Bem, a serpente não concorda. Ela quer que esta folha de bananeira seja revisada. Aliás, ela já começou a mexer na minha biografia antes mesmo de eu começar a escrever.
– Como assim?
– Ela deixou claro que a biografia precisa ter alguns capítulos específicos. Um deles precisa abordar como os macacos são superiores aos outros animais.
– Oi?
– Isso mesmo. Em outro capítulo, eu preciso dizer que as contribuições dos macacos para a arte e cultura do Paraíso são insuperáveis.
– Mas quais são as contribuições dos macacos para a arte e cultura?
– Foi exatamente isso que perguntei para a serpente.
– E o que ela respondeu?
– “Procure saber”.
– Soa meio arrogante.
– Concordo.
– Mas o problema é que, se você escrever somente o que eles querem, eles podem inventar qualquer coisa, sendo verdade ou não. Você não devia aceitar isso.
– Sim. Mas eles vão inventar tudo de qualquer jeito.
– Como assim?
– A serpente já avisou que se minha biografia não ficar boa, todas as folhas de bananeiras serão recolhidas e os macacos vão lançar sua própria biografia. Parece que eles já começaram a escrever. Tem até nome: Macacos do Paraíso: a Biografia. Depois vão decidir se lançam a minha ou a deles.
– Espere um pouco. Eles estão fazendo uma biografia. Por que você não pode fazer outra?
– A serpente disse que isso iria deixar os animais do Paraíso confusos. Falou que precisa existir somente uma obra, e oficial. Ou seja, vai ser a Macacos do Paraíso: a Biografia de qualquer jeito, escrita por eles ou por mim.
– Entendi.
– O problema é que eu já havia agendado diversas entrevistas. Uma delas parecia ser bem interessante. É de um leão que diz que um dos macacos escreveu uma canção sobre ele.
– Não sabia disso.
– Na verdade, não é um leão, é um filhote. Um leãozinho.
– Interessante.
– Aposto que seria uma história ótima. Mas não vale a pena fazer estas entrevistas se não vou poder escrever. O que o Senhor acha que eu faço?
– Adão…
– Minha vontade é escrever o livro e, se eles quiserem me processar, azar o deles. Mas preciso de um advogado. Aliás, tive uma ideia. O Senhor é bom com as palavras e…
– Não, Adão.
– Mas é que…
– Eu não sou advogado, Adão.
– Certo.
– Minha opinião é que você tem o direito de escrever quantas folhas de bananeira quiser sobre os macacos ou sobre qualquer animal que seja interessante. Desde que faça isso com responsabilidade.
– Mas entrevistar os animais e buscar provas do que eles falam para ver se é verdade não é ser responsável?
– Sim.
– E eu duvido que os macacos estejam fazendo isso. Aposto que eles vão esconder um monte de coisas! Ou o Senhor acha que eles vão dizer que, quando brigam, ficam jogando cocô um no outro?
– Com certeza, não irão falar.
– E todo mundo sabe disso. É nojento!
– Sim.
– Eles não deviam ter o direito de mudar a história assim.
– Sim. Mas, Adão… nós estamos falando de liberdade de expressão.
– Ei! Eles querem que eu use isso aí no livro!
– Como assim?
– Eles querem que eu diga que eles são grandes defensores da liberdade de expressão. A serpente disse que esse capítulo é bem importante e se não estiver do jeito que eles querem, o gorila vai me pegar. Só que eu nem sei o que é liberdade de expressão. Eu vou apanhar de novo, com certeza.
– Liberdade de expressão é o que dá aos macacos o direito de escrever a própria biografia como acharem melhor.
– Como assim? Eles vão mentir na biografia inteira! Eles têm esse direito?
– Sim. Mas é justamente por isso que eles não podem impedir você de fazer o mesmo. Toda história tem, no mínimo, dois lados. Mentindo ou não, eles não podem proibir você de contar o outro lado. Isso seria censura.
– Sem o quê?
– Censura. É uma palavra só.
– Entendi.
– Mas ainda acho que seria mais fácil se o Senhor os impedisse de mentir.
– Eu não posso fazer isso.
– Bem, o Senhor pessoalmente não… mas…
– Mas o quê?
– Bem… talvez um anjo ou dois…
– Adão…
– Com espadas de fogo…
– Não, Adão. Não posso fazer isso.
– Dizendo aos macacos que é proibido proibir…
– Não, Adão.
– Não faria mal algum um anjo descer até aqui e falar para aquele gorila que “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.
– Adão…
– Que tal “Gorila, afasta de mim esse cálice”?
– Não, Adão.
– Tem razão. Acho que ele não iria entender o trocadilho.
– Adão…
– Eu contei para o Senhor que, segundo a serpente, eu devo dizer na biografia que foram os macacos que criaram o Paraíso?
– Oi?
– Os macacos exigem um capítulo dizendo, com detalhes, como eles criaram o Paraíso e todos os animais que moram aqui.
– Como é que é?
– Isso. E que eu sou estagiário deles e cuido do Paraíso que eles criaram.
– Os macacos criaram o Paraíso?
– Eles dizem que sim. Aliás, o Senhor poderia me dar uma entrevista sobre isso. Que tal? Duvido que tenham a coragem de mexer numa frase Sua. Quero ver aquele gorila vir peitar o Senhor!
– Não, Adão. Esqueça. Esse negócio de biografias passou dos limites.
– Sabia que eu devia ter falado sobre esse capítulo no começo da conversa.
– O quê?
– Nada. Estava apenas pensando alto.
– Certo. Esqueça esse negócio de biografias. Vocês aí embaixo não estão prontos para isso.
– Mas a história do Paraíso não poder ser apenas Macacos do Paraíso: a Biografia.
– A história do Paraíso vai ser contada de outra forma. Não se preocupe.
– Certo. Mas esse livro dos macacos pode…
– Eu vou resolver isso.
– Sim, Senhor. Aliás, se o Senhor quiser ajuda para escrever a história daqui, posso ajudar. Entrevistar alguns animais…
– Não, Adão. Vá cuidar do Paraíso.
– Bem…
– E esqueça isso.
– Sim, Senhor.
Deus desligou o telefone e se pôs a pensar. Um livro dizendo que os macacos criaram o Paraíso poderia causar estragos. Não imediatamente, mas no futuro. E estragos enormes. Mas era preciso agir com calma. Não podia incentivar a censura.
Assim, esperou pacientemente até que a biografia dos macacos fosse escrita. E, quando surgiram as primeiras folhas de bananeira assinadas pelos macacos, Deus desceu secretamente até o Paraíso e recolheu todas as cópias. Entregou todas elas a um anjo e pediu que arquivasse as folhas num local longe da vista de todos.
O anjo obedeceu. Guardou todas as folhas de bananeira num arquivo abandonado e, para afastar os curiosos, colocou uma placa “Não mexer! Risco de Processo!”. Entretanto, achou que era preciso colocar também algo dizendo sobre o que aquilo se tratava.
Resolveu escrever o nome do livro. Porém descobriu que o nome Macacos do Paraíso: a Biografia era grande demais e não cabia embaixo da inscrição.
Abreviou o nome do arquivo para M.P.B., apagou a luz e foi embora.
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