Uma coisa que eu sempre nutri, desde a mais tenra infância, foi uma relação de total e completo desinteresse em relação a vida particular daqueles que eu considerava ídolos ou referências.

Não sabia de onde eram meus autores de quadrinhos favoritos, não tinha ideia se o vocalista da banda que eu mais gostava era casado, nem imaginava se os atores daquela série ajudavam organizações de caridade.

E mesmo no futebol, tudo que eu sabia da vida do meu maior ídolo era que o filho dele compôs não apenas “só no sapatinho” como também um pagode no qual ele se referia ao órgão genital feminino como “bichinho de pelúcia”.

Vacilo, hein, Galinho
Vacilo, hein, Galinho

Como vocês podem notar, eu não sabia muita coisa.

Não que eu não seja capaz de entender a lógica das pessoas que, quando interessadas por uma música, um livro, um filme, querem conhecer ao máximo a pessoa que produziu aquilo. Afinal, quando nos apaixonamos, não queremos saber onde aquela garota estudou, que filmes ela gosta, onde ela passava as férias quando criança?

Então nada mais natural do que as pessoas reagirem exatamente da mesma forma, por mais que eu sinceramente não consiga lidar com a minha paixão por um livro ou filme da mesma maneira — nos apaixonamos de formas diferentes, seja por coisas ou pessoas.

Mas outra coisa que sempre me impediu de querer conhecer melhor quem produzia as coisas que eu mais amava sempre foi, ainda que eu não admitisse, um certo medo de que conhecer aquela pessoa estragasse tudo. E não falo apenas de descobrir que a música que você dedicou pra sua namorada foi composta para uma avó que faleceu, que aquele livro não era sobre o que você imaginava, que o final que o roteirista tinha na cabeça pro seriado que foi cancelado era absolutamente idiota e totalmente diferente do que você imaginou.

Falo de umas coisas um pouco mais sérias.

Retrato do artista enquanto cara que você não gostaria de ver namorando sua irmã

Pense no Roman Polanski. Diretor, cineasta, reconhecido por filmes como Bebê de Rosemary, Busca Frenética e O Pianista, que possivelmente fez o seu tio chorar, sua mãe lacrimejar e deixou sua prima com um crush em homens de nariz grande. Referência no cinema contemporâneo. E também, claro, acusado de abusar sexualmente de uma menina de 13 anos.

Conhece o Orson Scott Card? É o autor do Jogo do Exterminador, um livro clássico de ficção científica lidos por diversos garotos e garotas ao redor do mundo. Mas também defendia leis contra a sodomia, é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo e financia ativamente organizações que trabalham contra esse direito.

"Cuidado aê, Emmanuelle! É o polanski, pô!"
“Cuidado aê, Emmanuelle! É o polanski, pô!”

O ponto em comum? O fato de serem pessoas cujos trabalhos ou ações nós admiramos tomando atitudes que consideramos reprováveis ou emitindo opiniões das quais discordamos. O que, é claro, leva a uma dissonância cognitiva, já que a simpatia gerada pelo seu trabalho entra em choque direto com a antipatia gerada pelas suas atitudes.

Do direito a livre opinião, ao livre arbítrio e ao livre constrangimento com a sua opinião e o seu arbítrio

Em primeiro lugar, e porque eu sei que isso vai vir a tona na caixa de comentários, todos têm direito de ter sua própria opinião, seja ela qual for. Todas as pessoas possuem o direito de ser contra ou a favor do que quiserem e o fato de que eu gostar do seu livro, do seu disco, do seu seriado, não gera nenhuma obrigação de que você precise compartilhar dos meus pontos de vista e defender apenas opiniões que eu considere corretas ou agradáveis e uma grande parte do valor da arte vem mesmo do choque de ideias.

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Da mesma maneira, decisões pessoais de um autor ou posições políticas de um atleta não tiram os méritos das suas realizações. Um filme não perde em qualidade pelos crimes do diretor, a trama de um livro não se torna menos inteligente pelas posições do autor e, independente de para onde desejemos levar discussões de racismo — tanto na obra do Monteiro Lobato quanto na do Tolkien –, é impossível negar a importância dos livros que eles produziram e todo o resultado positivo que nasceu daí.

O que sempre me preocupou foi como eu, enquanto consumidor desses produtos, enquanto usuário dessa arte, posso lidar internamente com o fato de que as pessoas que geraram essas coisas que eu amo tomam ações ou posições que eu abomino. Como lidar com o fato de que um cineasta que você gosta pode ser um estuprador? Que o autor de um dos seus livros favoritos defende ativamente preconceitos que você despreza?

Fazendo minhas as palavras de uma menina na internet: como lidar?

Claro, nós podemos tentar ignorar e ver as coisas em separado, distanciando o homem da arte. Mas isso, ainda que viável antes de termos as informações, se torna cada vez mais complicado depois que elas chegam até nós. Afinal, por mais que a gente tente separar a pessoa da obra, é difícil, depois de saber de certas coisas, não ficar buscando naquela obra informações que de alguma maneira sejam relacionadas aquilo.

Os preconceitos do autor estão refletidos no livro? Será que de alguma maneira aquilo não estava ali o tempo todo e nós é que não notamos? Será que de um certo modo isso não pode até mesmo ter sido introjetado por nós?

E como lidar com isso na prática?

Orson Scott Card, mais um homem que não quer ver a união entre dois homens
Orson Scott Card, mais um homem que não quer ver a união entre dois homens

Afinal, eu sinto vontade de ver o Ender’s Game no cinema, mas ao fazer isso, eu não estou dando dinheiro para um cara que vai reinvestir esse capital em impedir que dois caras se casem? Indo ao cinema ver um Polanski, eu não estou compactuando com o fato de que um cara que estuprou uma menina ainda está aí fora, solto, fazendo filmes?  Por mais que a gente queira entender a obra em separado do autor, a gente pode ignorar as implicações práticas que a fruição dessa obra trazem para o mundo?

Eu sinceramente ainda não tenho respostas.

Algumas reações são extremas, outras já considero completamente justificadas, algumas coisas acredito que faça todo sentido boicotar, outras eu me divido entre não achar efetivo ou ser fraco demais para conseguir — involuntariamente me pego torcendo pros criadores de Parks and Rec serem as melhores pessoas do mundo, por exemplo.

Mas acredito que numa sociedade em que cada vez o autor tem tanto destaque quanto a obra e é impossível apreciar o espetáculo sem conhecer o artista, esse seja o tipo de pergunta que a gente vai começar a se fazer cada vez mais.

João Baldi Jr.

João Baldi Jr. é jornalista, roteirista iniciante e o cara que separa as brigas da turma do deixa disso. Gosta de pão de queijo, futebol, comédia romântica. Não gosta de falsidade, gente que fica parada na porta do metrô, quando molha a barra da calça na poça d'água. Escreve no (<a>www.justwrapped.me/</a>) e discute diariamente os grandes temas - pagode