Um olho abriu um pouco inchado. O peso do corpo nas suas pálpebras. De bruços, a cabeça girava: mãos, pés, pernas, movimento, tudo aqui.
Existe aquele hiato, sabes? Quando acordamos, não chamo de vigília, mas quando despertamos, há aquele intervalo e não estamos dormindo ou sonhando nem tampoco lúcidos. Também conferes teus membros? Será que estás inteiro?
Ela sentiu falta do ângulo – eram quase 45 graus que existiam entre suas costelas e o colchão da cama e ocuparam o vazio que ali estava nos meses passados. Não mais.
Às vezes a gente cai no sono pensando no que vai fazer na semana que vem, certo? Ela caiu no sono pensando se a tatuagem ia doer e, ademais, que ela nem sabia ainda qual seria o desenho.
O importante é que despertou a tempo de passar um café pro menino antes que a van escolar passasse. Não gostava que ele saísse em jejum e, veja tu, deus sabe que esse menino assim sairia se não fosse a mãe lhe gritar todas as manhãs.
E eram especialmente difíceis as que vinham depois do tratamento. Ela não tinha vontade de se levantar, mas o menino em jejum lhe dava tamanho bicheiro de impaciência que zarpar do quarto ficava mais fácil à medida que o relógio ia marcando o horário e o barulho dos copos e pratos não se fazia na cozinha.
Aquela manhã não era uma delas. Pôde levantar tranquila e colocar o sutiã no seio. Pôde até sentar na cama e pensar que uma flor, uma begônia, ficaria linda.
Achava engraçado que houvesse uma variedade de flores mas que só o tom rosado da begônia combinasse com o mamilo vizinho. A pele dela era linda, era linda de arrepiar e de fazer gemer os olhos. Era branca arroxeada e ela nem se banhava de sol pra não avermelhar.
Passou o café forte, aquela cor de sangue envelhecido. Espalhou manteiga no pão pensando no homem – tinham um só filho, mas nenhum sex shop vendia aquele desejo de cortar com faca.
Uma begônia, ele ia adorar. Uma flor dessas tem linhas, sabes? Linhas que são um mapa pra língua dele. Não é como o mamilo, aquela desordem de relevos eriçados, qualquer um se perde ali.
Estava tudo marcado praquela tarde e sim, sim, pode ser que doesse pouco mais que as agulhas que entravam e saíam de seus antebraços no último ano, mas também pode ser que doesse menos que o olhar de sua mãe à primeira radioterapia.
Beijou o marido de língua à sua chegada e, aos quarenta anos, sentiu a volta dos vinte entre as pernas. No caminho, quis desligar o ar condicionado do carro e sentir o bafo quente do meio-dia paulistano fazer suar a clavícula. Quis tirar a blusa e bronzear a pele – e tirou. Assim, no carro, despretensiosa. Quis pintar a begônia no dorso das mãos como uma adolescente e pintou e coloriu com as canetas da escola do menino e sem blusa, assim mesmo, um pouco nua.
O barulho era meditativo. O buzz da caneta era alto e constante fazendo contornos na pele. Machucar a carne era quase um carinho na alma dela que doía, doía de medo.
As bolhas de sangue pintavam a flor e ela entrou na dança que lhe borrou os olhos de vermelho. E eles logo se fecharam. Ela via uma praia e o mar era rosa, a onda era rosa, batia rosada nas pedras que ela queria firmar os pés.
Sentiu a gaze roçar a pele e era quase como dedos lhe acarinhando o seio. De mirada aberta viu a begônia colada à pele sobre a prótese, como tatuagem refletida no espelho.
Se desfez o nó na garganta que estava ali desde que teve as mamas espremidas no exame primeiro, os ombros relaxaram em desaviso, o peito encheu de ar e soltou ternura.
E aí ela toda desabrochou.
* * *
Nota da editora: publicamos esse texto por estarmos em sintonia com o movimento Outubro Rosa. Internacionalmente celebrado, o ato convida a todos nós, homens e mulheres, a partilharmos informações de prevenção e tratamento do câncer de mama.
Ainda nesse contexto, a gravata símbolo do PapodeHomem no topo esquerdo do site ficará rosa durante o mês.
Todas as begônias e mãos estendidas a mulheres que lutam.
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