Esperei alguns dias, claro. Não se festeja a carne morta e não seria eu a rodeá-la feito mosca ou qualquer necrófrago. O convite partiu dela, para dizer o fato mais concreto e, me chamando, fomos até o café que ela tanto gosta. 

Um lugar neutro.

Acontece que a Fátima estava mais leve do que imaginei. Depois de um relacionamento de tempos, ironicamente a primeira sensação depois dos dias de confusão com a nova realidade a um e não mais como dupla é a de alívio, como se soltasse uma cinta elástica e a respiração se tornasse um ato muitíssimo mais simples de se executar. E lá estava ela, na minha frente, do outro lado da mesinha para dois, inspirando como se fosse descolar a bunda da cadeira e sair flutuando. 

Não toquei no assunto do término, não perguntei como foram os últimos dias, não a levei sem que quisesse para uma realidade que podia ficar para depois. dei espaço para ela comentar de seus novos projetos, das ideias que tinha para seu tempo livre, das boas experiências dos últimos tempos. Ela estava achando interessante fazer pequenas coisas com plena autonomia, o que antes exigiria algum tipo de matemática simples, mas contente, de como sua escolha afetaria outras partes conectadas à sua vida. Não era algo que pesava, me fez questão de ressaltar que a parceria era o que tinham de mais forte e que gostaria de ter isso de novo quanto antes se apaixonasse novamente, mas que o simples fato de escolher um doce para comer ou olhar as vitrines de roupas no shopping se tornaram ações completamente diferentes, pois agora suas decisões afetavam tão somente ela e nada mais.

Estava se deleitando com pequenos prazeres do autogoverno.

E nada melhor do que deixar alguém com tanta novidade contar todos os pormenores. Eu só observada a maneira com que ela desenhava geometrias desformes na mesa com movimentos apressados dos dedos e a maneira com que olhava para cima curiosa ao final de cada pequenina epifania que tinha quando ela mesma chegava a conclusões sem eu encaminhar seus pensamentos. Tem coisa melhor que ver alguém pirando na sua frente com as próprias falas?

Eu só afirmava de volta com a cabeça e fazia perguntas com o intuito de impulsionar ainda mais as explosões de assuntos entremeados na cabeça dela. Até que ela percebeu o empurrão e sorriu. Rearranjou a coluna na cadeira, me olhou e tomou na mão a xícara o café. Bebeu seu conteúdo, olhou o formato arredondado da borda, os desenhozinhos na cerâmica, me fitou novamente. Me puxou pelo queixo apertou o lábio no meu. A língua dela estava quente. 

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Lá fora, enquanto esperava o carro dela chegar do manobrista, a Fátima bateu o ombro dela no meu, como se precisasse me chamar a atenção mais uma vez. Disse pra mim enquanto seus olhos procuravam fuga no céu cinzento de garoa que tinha achado uma delícia, que se os primeiros beijos são os que acabam ficando guardados na memória, que estava feliz que o primeiro dela sem ele foi comigo. Eu sorri chutando alguma pedrinha no chão. O carro dela chegou. Quando ela abriu a porta eu disse "boa noite".

A Fátima, que ouvia isso diariamente por tanto tempo, me olhou com um olhar de alívio, como se fosse a primeira vez que ouvira a despedida em muito tempo e isso não havia lhe pesado. Piscou pra mim com os dois olhos ao mesmo tempo e foi embora.

O amor. É só a gente relaxar que ele não atrapalha.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados