Já passou por uma loja de produtos naturais? Entre alguns produtos que são, de fato, providos pela natureza, encontramos outros bastante esquisitos, com cara de quem não nasceu em árvore. Barrinhas de cereais, pílulas que prometem efeitos num gole, comidas dietéticas, bebidas em pó, shakes emagrecedores.
Mas isso é natural? Desde quando passamos a acreditar que laboratório é lugar de se preparar alimento? Qual nosso conceito de comida saudável?
Reza a lenda que há algumas décadas a ciência passou a acreditar que é a gordura saturada a grande vilã da alimentação saudável. Tudo porque um cientista chamado Ancel Key pesquisou sobre hábitos alimentares e cruzou dados — de maneira que hoje entendemos como muito questionável. Keys chegou à conclusão de que as pessoas estavam morrendo por conta da gordura que ingeriam.
Além de ser um dos responsáveis pela endemonização da gordura saturada (aquela do leite, das carnes, do óleo de côco, do azeite de dendê…), as ideias de Keys se refletem nos dias de hoje quando a gente cai na besteira de acreditar que peito de peru e barra de cereal são comida saudável. Que pacote lacrado com o rótulo diet ou comida processada do tipo light são alimentos. Não são, são produtos alimentícios.
Ao buscar soluções para não ingerir gordura saturada, inventamos comidas no laboratório. Assim, substituímos a manteiga pela margarina: menos calorias, menos gordura, um rótulo que mostra uma família feliz e indica que ali tem vitaminas. Acreditamos na propaganda e compramos a ideia de comer uma cera pastosa manipulada em laboratório com aditivos esquisitos.
Entre tanta comida de pacote, tanto alimento diet e light e shake emagrecedor, surgem iniciativas assustadoras que transformam o ato de se alimentar em uma tarefa puramente burocrática.
Soylent, “the ultimate food”
O anúncio deste produto acredita que cozinhar e comer são obstáculos da vida moderna. Para se livrar deste esforço, basta tomar um só shake para sempre, com “tudo o que você precisa”. Como se comer não fosse parte da natureza humana, como se fosse tempo perdido. Como se conseguíssemos reproduzir toda a variedade de comida e nutrientes importantes para nossa saúde em uma bebida pastosa.
Já existe uma medicina estudando para entender que as vitaminas adicionadas aos produtos alimentícios são de pouco ou nenhum aproveitamento para o nosso organismo. Faz parte de uma visão de ciência reducionista dizer que a vitamina A da cenoura faz bem para os olhos e tentar isolá-la em laboratório para consumo humano. Não é a vitamina A da cenoura injetada no seu danoninho que faz bem. É a combinação exata da cenoura inteira (que tem vitamina A) que nutre, entre outras partes, seus olhos. “Há uma arrogância terrível na ideia de que sabemos o suficiente para simular comida.”, diz Michael Pollan, um dos maiores autores e ativistas da alimentação saudável.
“Cozinhar é um ato político”
“Abrimos mão de muito poder ao deixar as grandes corporações cozinharem para nós porque elas decidem quais fazendas vão apoiar e, normalmente, são bem aquelas que fazem um tipo de agricultura que certamente você desaprovaria.” | Michael Pollan, em entrevista à Serafina
O contato com a nossa comida é um jeito de dizer ao mundo quais são as nossas escolhas.
Para ter uma alimentação saudável, é bom que a gente retome antigos hábitos: quanto mais perto ficarmos da comida que a gente come, nossas escolhas serão mais saudáveis e menos prejudiciais ao meio ambiente. Não sou eu que digo isso. Michael Pollan explica que a gente deve desconfiar de comida com código de barra. Que a gente deve entrar no supermercado e escolher apenas o que nossos antepassados considerariam como comida.
Certamente não era um hábito comum tomar shake para substituir refeição há algumas décadas. Não se comia barrinha de cereal, não se trocava manteiga por margarina e a comida era do tipo perecível mesmo.
Estragava.
Comida de verdade estraga.
Para se alimentar melhor, para ajudar a ter em mente uma concepção de comida saudável como comida de verdade, podemos nos cercar de bons exemplos. Seguir pessoas que estejam na contramão desta praticidade enganosa, que saibam fazer boas escolhas e que nos ensinem a comer bem, sem acreditar cegamente na cultura dos processados que nos cerca.
Eu escolhi seguir as receitas e as dicas de Pat Feldman. Ela escreve sobre comida de verdade e me ajudou a superar o medo dos ovos e da manteiga e a ficar sempre de olho nos industrializados. Tem dicas fáceis e faz do cozinhar um ato diário, o que dá aquele ânimo para se aventurar com as panelas também. Assim é mais fácil esquecer que existe caldo em tablete, glutamato monossódico e produtos ultraprocessados – simplesmente não entram na minha cozinha.
Francine Lima, do canal Do campo à mesa, explicando quantos morangos tem um iogurte de morango
Francine Lima, do canal Do campo à mesa, ensina em vídeos muito divertidos a fazer escolhas melhores. O iogurte que você compra tem açúcar? Seu requeijão é um queijo mesmo? Francine é muito didática ao nos ensinar a ler os rótulos dos produtos, explicar os motivos pelos quais devemos desconfiar da indústria alimentícia e contar como cobrar do seu fornecedor alimentos com qualidade superior.
Food Inc, um filme de Robert Kenner que critica o sistema de produção de alimentos
Alguns documentários fazem o trabalho de me lembrar que o que como é de minha responsabilidade. Dois exemplos: Food Inc, este aqui em cima, e o brasileiro incrível de Estela Renner, que mostra de perto os problemas gerados pela publicidade na alimentação infantil.
Além disso, Michael Pollan tem vários livros publicados, um melhor que o outro. Carlos Braghini Jr escreveu o livro Ecologia celular, contando bastante sobre alimentação saudável. No site do médico Alexandre Feldman a gente encontra um monte de informação sobre como é necessário comer comida de verdade.
Tem também a nutricionista Carol Morais, com um site gostoso de ler, e Ana Holanda e seu projeto de resgatar a memória afetiva da comida, Minha mãe fazia. Muita gente pra seguir e se inspirar!
Consumir comida de caixinha reduz nossos processos, nos desconecta da natureza e nos afasta do alimento. É muito importante que a gente vá para a cozinha, que a gente redescubra que somos parte de um sistema maior. Cozinhar e oferecer é uma resposta generosa à cultura da comida pronta.
Cada vez que seleciono comida no supermercado, na feira, na quitanda, coloco ali minha concepção do que acredito que é saudável. Cada vez que escolho comprar carne (esta é uma questão minha agora), ratifico ou não esta indústria. A cada fornecedor de alimento que escolho como meu, apoio a iniciativa daquela produção diretamente.
Quanto mais próximos da nossa comida, menos somos levados a acreditar na ilusão da propaganda. Mais entendemos o que está por trás daquilo tudo que está escrito na caixinha e temos discernimento para escolher comprar ou não, comer ou boicotar.
Quanto mais abrimos os olhos para a publicidade por trás destes alimentos, menos acreditamos na vaquinha feliz do rótulo, no cuidado com a inteireza daquele alimento na lata, na cara de comida daquele pacote com validade de três anos. E, naturalmente, mais comemos comida de verdade.
Sobre a coluna “Absurdos”
O torpor do dia a dia faz com que a gente não se atente para várias coisas esquisitas da nossa cultura. Esta coluna mensal é sobre alguns destes absurdos contemporâneos.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.