Em 02/01/2014, o semanário italiano L’Espresso publicou uma carta aberta de Martin Scorsese destinada a sua filha, Francesca.

A carta segue abaixo e pode interessar, além envolvidos com cinema e fãs do diretor, a todos nós, na medida em que a situação relatada por ele pode ser aplicada a outras formas de arte.

Nunca foi tão fácil e barato para um músico compor suas músicas, gravá-las e divulgá-las na internet. Da mesma forma, nunca foi tão fácil para um escritor pular todos os custos de publicação e distribuição editorial, divulgando seus contos e romances também na internet.

Mas até que ponto essas facilidades podem deixar os artistas mais descomprometidos e descuidados? Se podemos dar tantos tiros quanto quisermos, porque a arma é barata e a munição farta, teremos a mesma dedicação e esforço em aprimorar nossa mira que teríamos se apenas uma bala estivesse a nossa disposição?

Quando são poucas e preciosas as oportunidades, não colocamos todo nosso espírito e inspiração nas raríssimas chances que surgem?

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O cenário descortinado por Scorsese não é pessimista, mas promissor. Porém, ele não deixa de lembrar que novas oportunidades trazem novos problemas, e que mesmo os novos problemas podem ser enfrentados se consultarmos o legado de sabedoria deixado por velhos mestres.

“Querida Francesca,

Estou escrevendo esta carta para falar sobre o futuro. E estou olhando para ele através da lente de meu mundo. Através da lente do cinema, que tem estado no centro de meu mundo.

Nos últimos anos, percebi que a ideia de cinema com a qual cresci, a ideia que está por trás dos filmes que te mostrei desde quando você era criança, e que prosperava quando comecei a filmar, está chegando ao fim. Não estou me referindo aos filmes que já foram feitos. Estou me referindo aos que estão por vir.

Não quero soar desesperado. Não estou escrevendo estas palavras com espírito de derrota. Ao contrário, acho que o futuro é brilhante.

Nós sempre soubemos que fazer filmes era um negócio, e que a arte do cinema foi possível porque ela se alinhava com as condições do mundo dos negócios. Nenhum de nós que começou nos anos 60 e 70 tinha qualquer ilusão a esse respeito. Sabíamos que teríamos que trabalhar duro para proteger aquilo que amávamos. Também sabíamos que poderíamos ter de passar por alguns períodos difíceis. E suponho que nós percebemos, em certo grau, que poderíamos chegar ao momento em que todos os elementos inconvenientes ou imprevisíveis na produção de um filme seriam minimizados, talvez até eliminados.

E qual elemento mais imprevisível de todos?

O próprio cinema.

E as pessoas que trabalham nele.

Não quero repetir o que já foi dito e escrito por tantos outros antes de mim, sobre todas as mudanças nesse negócio, e estou animado com as exceções à tendência geral no cinema — Wes Anderson, Richard Linklater, David Fincher, Alexander Payne, os irmãos Coen, James Gray e Paul Thomas Anderson estão conseguindo fazer seus filmes, e Paul não apenas conseguiu fazer em 70 milímetros como também conseguiu que o filme fosse exibido nesse formato em algumas cidades.

Qualquer pessoa que se preocupa com o cinema deveria ser grato por isso.

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E eu também me sinto entusiasmado com artistas que continuam a conseguir produzir seus filmes pelo mundo todo, na França, na Coréia do Sul, na Inglaterra, no Japão, na África. Está ficando mais difícil a cada momento, mas eles estão conseguindo realizar seus projetos.

Mas não acho que sou pessimista quando digo que a arte do cinema e da indústria do cinema está agora em uma encruzilhada. O entretenimento audiovisual e aquilo que conhecemos como cinema — obras cinematográficas concebidas por indivíduos — parecem estar indo para direções distintas.

No futuro, você provavelmente verá cada vez menos o que reconhecemos como filmes sendo exibidos em cinemas multiplex e verá cada vez mais obras exibidas em salas menores, disponibilizadas online e, suponho, em lugares e circunstâncias que não sou capaz de prever.

Então, porque o futuro é tão brilhante? Porque pela primeira vez na história dessa forma de arte, os filmes podem ser feitos com muito pouco dinheiro. Isso não existia quando eu era um adolescente, e filmes de orçamento extremamente baixo sempre foram a exceção, e não a regra.

Agora, é o contrário.

Você pode obter belas imagens com câmeras acessíveis. Você pode gravar o som. Você pode editar, mixar e reajustar cores em casa. Tudo isso está acontecendo.

Mas com toda a atenção dispensada ao processo de fazer filmes e aos avanços tecnológicos que nos levaram a essa revolução na produção cinematrográfica, há uma coisa importante a lembrar: as ferramentas não fazem o filme, é você quem o faz. Você pode facilmente pegar uma câmera e começar a capturar imagens e então colocá-las todas juntas em uma edição final. Mas fazer um filme (aquele que você precisa fazer), é mais do que isso.

E não há atalhos.

Se John Cassavetes, meu amigo e mentor, estivesse vivo hoje, ele certamente estaria usando todo o equipamento que está disponível por aí. Mas ele diria as mesmas coisas que sempre disse — você tem que ser absolutamente dedicado ao trabalho, você tem que dar tudo de si mesmo, e você tem que proteger a centelha da conexão que levou você a fazer o filme, em primeiro lugar.

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Você deve protegê-lo com sua vida.

No passado, porque fazer filmes era tão caro, tivemos que proteger contra a exaustão e os comprometimentos. No futuro, você terá de proteger-se contra outra coisa: a tentação de se deixar levar pela corrente e permitir que o filme fique a deriva, distanciando-se de você.

Esta não é apenas uma questão de cinema. Não existem atalhos para nada. Não estou dizendo que tudo tem que ser difícil. Estou dizendo que a voz que inflama você é a sua voz – a sua luz interior, como os Quakers costumam dizer.

Isso é você. Essa é a verdade.

Todo meu amor,

Papai.”

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."