O guru indiano Padmasambhava profetizou, no século VIII, que em nossos tempos uma em cada 20 pessoas se diria portadora de grande sabedoria e experiência de vida, capaz de ensinar os outros, e que assim falsos gurus seriam muito comuns.
Talvez em parte devido a isso, nossa cultura se tornou tão cínica que hoje é difícil pensar o termo “guru” sem já antever enganação.
No livro Feet of Clay (“Pés de Barro”, implicando o ditado em inglês que os ídolos têm pé de barro, isto é, no fundo, não se sustentam, são falsos) Anthony Storr — psiquiatra mais conhecido como biógrafo de Carl Jung — examina as características psicológicas que levam ao extremo carisma combinado com comportamento narcisista, psicopata ou criminoso de vários líderes (especialmente religiosos, mas não só), começando com os que causaram suicídio coletivo e atos de violência, passando pelo abuso financeiro e sexual e o mero charlatanismo desbragado, e terminando com alguns exemplos, senão perfeitos ou bons, bastante mais brandos, como os próprios Freud e Jung.
Storr associa ao líder carismático, em particular os mais funestos, a característica deles nunca terem conseguido, desde criança, encarar os outros como iguais.
Alguns estudiosos da sociologia (Foucault, por exemplo) diriam que essa é uma impossibilidade, porém, todos nós que não nos tornamos líderes carismáticos, sabemos em certa medida lidar com algumas pessoas em pé de igualdade.
O mais impressionante talvez não seja que algumas pessoas sejam incapazes de qualquer nível de sentimento de igualdade, mas que essa assimetria se torne fascinante para os seguidores. Isto é explicado pela natureza da nossa relação com os pais, já que, em geral, o guru (e alguns diriam a religião de forma geral) é um substituto deles ou uma superestrutura que segue nos fornecendo ao longo da vida, um eixo “melhor” do que nossa família, quando ela se mostra imperfeita.
Nada de necessariamente errado com isso, mas e quando os novos pais abusam de seus filhos?
Alguns dos documentários mais interessantes que já assisti tratam dessas figuras. Porque posso facilmente perceber o fascínio dos seguidores, o rompimento radical com a sociedade mainstream para a criação de uma “sociedade alternativa”, e os muitos valores positivos que invariavelmente estão presentes, pelo menos nos seguidores e no início, ainda que acabem tristemente corrompidos.
Há um elemento de nostalgia e extremo pathos nas imagens de gente jovem sendo ludibriada, e há algo a respeito dos anos 60 ao início dos 80 — período em que a maioria desses documentários se passa — que também acho fascinante.
Além disso, um dos meus professores (um, ora, guru) no budismo recomendou o livro de Storr publicamente, e assim acho que esses documentários são também bons no mesmo sentido de aviso — isto é, não quero jamais implicar que todo o guru seja um farsante, e que toda a relação hierárquica, desigual e assimétrica seja um problema (a maioria não é, a começar pela relação entre pais e filhos) –, mas é sempre, em todos os casos, bom abrir os olhos e não se deixar enganar.
O mais impactante e impressionante de todos os documentários que recomendarei é esse aqui:
Jonestown: The Life and Death of Peoples Temple (2006)
Quando eu era criança, o programa do Chico Anísio parodiava um pastor falcatrua de TV com o nome de Tim Tones, que é uma brincadeira — em retrospecto percebo, um bocado macabra — com o nome de Jim Jones, que foi responsável pelo suicídio de mais de 900 pessoas na Guiana (Inglesa, aqui na América do Sul, embora a maioria delas fosse estadunidense e afrodescendente).
Paranoico pelo abuso de drogas e possivelmente outros problemas psiquiátricos, Jim Jones se sentia perseguido pelo governo estadunidense, e promoveu o suicídio coletivo como uma forma de já “irem direto para o céu” e evitarem aquela complicação toda.
Primeiro os pais deram ki-suco com veneno para as crianças e, enquanto estas gritavam de dor, eles mesmos o tomavam.
O documentário entrevista vários sobreviventes e mostra um pouco da história da igreja de Jim Jones, explicando por que aquela figura era tão carismática e qual era o poder que ele tinha sobre essas pessoas.
Mas o que faz desse um documentário de gelar o sangue nas veias é que ele foi feito exatamente quando o som e as imagens — tudo fora filmado, fotografado e gravado — do suicídio coletivo tiveram seu sigilo legal prescrevido. Portanto, o documentário é extremamente gráfico e desesperador.
Um dos documentos antropológicos e psicológicos mais importantes para o entendimento de cultos e dos extremos a que eles podem levar.
Children of God: Lost and Found (2007)
Link Youtube | Parte 1 de 7. Só seguir com os vídeos
Feito pela HBO, o filme mostra um pouco da história da Família Internacional, anteriormente chamada “Filhos de Deus” (ou “Meninos de Deus”, segundo a Wikipédia em português), daí o título.
O guru David Berg fundou essa organização meio hippie, meio cristã, onde todo tipo de esquisitice começa a ocorrer. Ele mesmo é acusado de pedofilia e antissemitismo, mas o que é certo é que um dos modos de angariar seguidores era “prostituição sagrada”, chamada Flirty Fishing, ou “pescaria de flerte” — pescaria, é claro, num sentido bíblico, de Jesus e certos discípulos. Desculpem, minha catequese vai mal e não recordo quais –, que eram pescadores e daí Jesus faz aquela metáfora de que agora iriam pescar pessoas.
Para este fim, entre a publicidade e os manuais de “fisgação”, havia inclusive histórias em quadrinhos. O movimento acabou criando a primeira organização anti-culto, a FREECOG, que infelizmente acabou sendo comprada pela Igreja da Cientologia.
Sim, a Cientologia comprou uma organização anti-culto.
The Secrets of Scientology (2010) e Scientology and Me (2007)
Link YouTube | The Secrets of Scientology
Link YouTube | Scientology and Me
Falando em Cientologia, esses dois documentários para o programa Panorama da BBC, e preparados por John Sweeney não são exatamente satisfatórios. Sweeney tenta expor algumas das grandes desconfianças em torno da cientologia — lavagem cerebral, espionagem, chantagem — e consegue alguns depoimentos impressionantes.
Mas a impressão que se tem é que antes de algum escândalo muito grande acontecer, o poder da Cientologia ainda é grande demais para que se entenda o que realmente acontece nos “níveis mais altos” da organização.
Só quando isso ocorrer, um documentário realmente impactante e interessante com relação a Cientologia vai ser possível.
Manson (1973)
Há muitos filmes e documentários sobre Charles Manson e os crimes perpetrados por sua “família”, mas esse é interessante por ser um documento de época, com cenas dentro do rancho onde eles viviam, e entrevista com vários membros ainda jovens e ainda “fascinados” por Manson.
O julgamento de Charles Manson foi a primeira jurisprudência com relação a “lavagem cerebral” como argumento para mandante de um crime. Na época, nenhum dos acusados quis entregar o líder, que teria indicado ou dado a ordem de matar a jovem e linda Sharon Tate, então esposa e grávida de Roman Polanski, e mais uma meia dúzia de pessoas.
Com requintes de crueldade.
Manson, que ainda está preso e ainda vez que outra aparece em vídeo, ainda com uma aura de fascínio macabro a seu redor, filho de uma prostituta de 16 anos, passou a maior parte da juventude em reformatórios por crimes pequenos. Em meio a drogas e papos apocalípticos, convenceu alguns jovens a morar no rancho cedido por um senhor cego em troca de favores sexuais das meninas.
Alimentavam-se de restos de lixo do supermercado, enquanto Manson, fascinado pelos Beatles e outros músicos, tentava brilhar como uma celebridade do mundo da música. Quando se sentiu prejudicado em alguma promessa de promoção musical, e também por motivos evidentemente irracionais, se tornou violento e convenceu os jovens a matar.
O documentário Manson tem um estilo datado, com boa parte da narração pelo próprio promotor público que conseguiu a condenação de Manson. É uma pedra em cima do caixão do sonho hippie, já que a associação era inescapável, e o tom é “vocês viram o que acontece quando a cultura começa a louquear”.
The Source Family(2012)
Se Manson era o pior cenário da onda hippie, The Source Family é o melhor. E também não é exatamente bonito de se ver.
James Baker, o Father Yod, era um sujeito bonitão e milionário, mestre em artes marciais com algumas mortes nas costas, que passou por uma crise/revelação “espiritual” e começou a agremiar jovens a seu redor. O restaurante que dá nome a família, o “The Source”, foi um dos primeiros restaurantes naturebas da Califórnia, e aparece, por exemplo, no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa de Woody Allen, e foi motivo de chacota pelo Saturday Night Live em suas primeiras temporadas.
Os jovens trabalhavam nesse restaurante e moravam em comunidade na casa do Papai Yod, onde passavam os dias “meditando”, se amando, fumando maconha e tocando rock’n’roll. Até aí, mais ou menos tudo bem.
Mas tem sempre aquelas esquisitices e dificuldades de qualquer seita: grana confiscada, menores e crianças nascendo em meio a uma… criação um tanto diferente, o líder começa com uma regra de um homem e uma mulher e, no meio, muda para um homem e muitas mulheres — para ele pelo menos — e assim vai.
Perto das outras seitas descritas acima, são quase santos, mas não é bem assim. Entre os “sobreviventes” há uma diversidade de relatos, alguns muito arrependidos, outros nem tanto, e pelo menos um ou dois ainda “seguidores”.
O documentário, de toda forma, é muito interessante. E se você, como eu, tem certo fascínio (ambivalente, meio jocoso, que seja) pelos hippies, vai adorar.
É um documento antropológico.
Waco: The Rules of Engagement (1997)
Esse documentário é mais difícil, porque a maior parte dele se passa dentro de audiências no congresso dos EUA, tentando esmiuçar o que exatamente deu errado quando a polícia (principalmente) matou um bocado de gente da Seita do Ramo Davidiano, emboscados numa casa em Waco, no Texas.
Todos hoje parecem concordar que foi um erro da polícia, ainda que David Koresh casasse com crianças de quatorze anos — mais de uma — e estivesse acumulando um arsenal para o fim do mundo (que ele, é claro, como qualquer um faria, confundiu com o cerco policial).
Em meio a essa audiência, são mostrados depoimentos dos membros da seita, gravados horas antes de serem mortos, como uma tentativa de convencer o público e a polícia de que não estavam fazendo nada de errado.
Filmes relacionados
Além de documentários, há uma série de filmes recomendáveis, dramatizando esses eventos e situações fictícias semelhantes.
Sobre Charles Manson, o melhor filme é Helter Skelter (1976) – se você não conseguir esse, o Helter Skelter de 2004 é bem assistível também. The Manson Family (2003) já não é tão legal, e não vale tanto a pena. Se você prefere assistir um documentário mais recente sobre o mesmo assunto, assista The Six Degrees of Helter Skelter.
O filme sobre Waco não é bom, é um filme para TV chamado Ambush in Waco: In the Line of Duty, de 1993, mas talvez seja até mais palatável de assistir que o documentário.
Sobre os efeitos das seitas sobre as vidas e psiques das pessoas, Martha Marcy May Marlene (2011) é um bom filme. Holy Smoke (1999) já não é, mas explora o mesmo tema e tem atores interessantes: Harvey Keitel e Kate Winslet.
Keitel é um especialista em “desprogramação”, isto é, um cara que faz a lavagem cerebral depois que você passou pela lavagem cerebral. E Winslet é a vítima do culto, que não está nem um pouco interessada em ser desprogramada, mas que é sequestrada por Keitel a mando da própria família.
The Master (2012) é um filme muito bom e com boas atuações, mas que prefere o caminho da ambiguidade moral porque, é claro, o Paul Thomas Anderson é um sujeito sofisticado, e então ele não toma partido. O guru é extremamente semelhante a L. Ron Hubbard, fundador da Cientologia e, portanto, o filme poderia ter seguido na direção de uma boa crítica dela. Mas não, o filme acaba quando a organização está começando a virar um mega empreendimento, na Inglaterra.
E a relação é totalmente indireta, só feita por quem conhece bem a vida do fundador e alguns críticos de cinema. Você sai do filme com a sensação de ter visto algo impressionante — as atuações são fantásticas — mas também com um grande “e daí?”.
O que é uma sensação interessante, mas seria legal um filme mais maniqueísta sobre o L. Ron Hubbard: talvez eles nem consigam fazer, com toda a malha de pressão da Cientologia sobre Hollywood hoje.
Ao pesquisar para este artigo, me deparei com alguns títulos que ainda vou assistir, como Marjoe (1972), The Cult at the End of the World (2007), Ticket to Heaven (1981), God Willing (2010), Sons of Perdition (2010), American Commune (2013), Join Us (2007, baixável em torrent como Leaving the Cult), The Cult: Heaven’s Gate Story (2002) e A (1998).
Alguns deles foram citados em uma matéria semelhante da Dazed, que teve ideia semelhante a minha enquanto escrevia este artigo.
Evitei mencionar filmes com seitas macabras que são meras vilãs na trama, no sentido do protagonista as ver com estranhamento/não se envolver, ou de serem muito sobrenaturais, ou sem realismo. Também evitei mencionar o péssimo Kumare (2011), que é um documentário-pegadinha desonesto e de ética duvidosa — se você tem a edição do seu lado, e você quer fazer os outros de idiota, isso não é difícil em nenhum contexto.
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