Quando você olha para a página de um livro, sem ler as palavras impressas, não acontece quase nenhum tipo de comunicação. Além de identificar que o objeto é um livro e que as palavras estão impressas no papel formando uma mancha, não é possível saber de que se trata o texto.
Já quando olhamos para uma imagem (vamos imaginar uma paisagem campestre), acontecem vários níveis de comunicação. As cores, a iluminação, o tipo de material usado para criar a imagem (pense na diferença de uma foto para uma pintura impressionista), os elementos da composição (se existem pessoas retratadas na cena ou não), tudo comunica.
Para acessar o livro precisamos aprender a decodificar as letras que formam as palavras e as frases. Historicamente quando Gutenberg inventa a prensa de tipos móveis no século XIII, começamos a ver a infância como uma fase distinta da vida (marcada pela incapacidade de acessar tal código). Antes disso o conhecimento era passado através da imagem e da linguagem oral. Só que agora tudo mudou mais uma vez.
No século passado, com o rádio, a TV, o computador pessoal e agora a internet móvel, temos o declínio da escrita como principal meio de armazenar e transmitir informação e a ascensão da imagem. No início desse processo entre o final dos século XIX e início do XX, nasceram os quadrinhos e o cinema como mídias de massa.
Ainda que primas, essas duas novas linguagens são bastante distintas entre si. Mesmo que uma espécie de história em quadrinhos (storyboard) seja uma etapa comum na produção de filmes, o produto final tem características menos complexas que um bom gibi. Numa sequência de imagens que aparecem na tela uma após a outra, nossa percepção é de acontecimentos isolados que se sucedem (mesmo que a cronologia da narrativa seja quebrada, com começo, meio e fim entrecruzados).
Nos quadrinhos, quando abrimos uma determinada página, a imagem do conjunto de todos os quadros que compõem a narrativa é apreendida como uma paisagem. As cores, a luz, as proporções dos quadros ou a ausência deles, já nos inundam com muitas camadas de significado. Antes de lermos as imagens de cada quadro e de decodificarmos as falas e pensamento do narrador e dos personagens, já somos inundados por um mar de informação.
A seguir listamos 5 histórias em quadrinhos que exploram ao máximo as possibilidade dessa linguagem única e que vão mudar o seu conceito a respeito da 9ª Arte. Se você quer sair da infância (ou voltar pra ela), comece por aqui:
1. Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons – DC Comics, 1985)
No contexto da Guerra Fria, super-heróis cheios de traumas e neuroses voltam à ativa para investigar o assassinato de um deles. Moore define para cada página de Watchmen a divisão base de 9 quadros (3 fileiras de 3 quadros cada). Essa estrutura, assim como a de um soneto, é seguida rigidamente ou é subvertida para marcar as características psicológicas de seus personagens. As páginas que mostram Ozymandias (personagem central da trama) são espelhadas, simétricas. Já o psicopata Rorschach, segue a divisão rígida da grade, sem emoções. O ritmo interno de cada personagem, suas limitações e intenções, se apresentam ao leitor antes mesmo da leitura começar.
2. Asterios Polyp (David Mazzucchelli, 2003)
Um arquiteto teórico e filósofo arrogante (Asterios), sempre desenhado em azul (ciano) com proporções geométricas perfeitas, se apaixona por uma professora de arte, representada por traços livres e espontâneos de cor vermelha (magenta). O caos que ela trás para a vida dele leva ao conflito e a inevitável separação. Asterios segue então uma jornada de autodescoberta magistralmente desenhada por Mazzucchelli, entre a linha rígida e o gesto livre, entre a razão e o sentimento.
3. We3 (Grant Morrison e Frank Quitley. 2003)
Três animais de estimação geneticamente modificados para se tornarem armas de destruição em massa fogem da instalação militar e lutam para não serem recapturados. O roteiro é simples mas a forma como a narrativa é apresentada é única. Temos que entender a história pela capacidade limitada de comunicação dos animais, que pensam de forma concreta, sem abstrações e metáforas. A arte segue esse mesmo caminho com páginas que fragmentam a ação e simulam um 3D impossível de ser reproduzido em outra mídia.
4. Trillium (Jeff Lemire, 2014)
Em 1921 um explorador procura um templo inca nas florestas do Peru. Em 3797 uma cientista tenta se comunicar com outra civilização para conseguir uma flor em um templo, que pode salvar a raça humana da extinção. Os dois personagens se cruzam ao entrarem no templo, cada um no seu próprio tempo cronológico. Lemire avança a narrativa dos dois personagens paralelamente, em páginas divididas ao meio, com uma divisão de quadros espelhada. O leitor pode optar por seguir a história de um personagem primeiro ou pode tentar ler os dois tempos cronológicos diferentes simultaneamente. Não é para os fracos.
5. Here (Richard McGuire, 2014)
Essa graphic novel é o desdobramento da mesma história publicada originalmente em 1989 na revista Raw. O autor nos mostra sempre o mesmo lugar, mas sobrepõe quadros de tempos históricos diferentes. Aos poucos esse mosaico de imagens momentos distintos vai formando uma narrativa. O leitor avança e volta as páginas para preencher as lacunas, lembrar, comparar e especular sobre a relação entre tantas imagens. Mais do que uma história sobre um ponto fixo, Here nos fala da nossa relação com o tempo e o espaço e o impacto de nossa presença no mundo. É o exemplo final de como imagens podem ser utilizadas para transmitir mensagens distintas de maneira efetiva.
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Esse texto faz parte da parceria editorial entre o PapodeHomem e os Quadrinheiros. Estamos publicando um artigo original por mês, pra você, sempre às sextas-feiras, mas quem quiser mais é só conferir o site e o canal no Youtube deles. Vale.
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