Não faço ideia da temperatura naquele dia, só sei dizer que era madrugada e o calor era enorme. Como acontecia todas as noites, por volta de 3h da manhã, eu acordei. Abri os olhos na hora exata em que o ventilador começava se movimentar mais devagar, transformando o quarto em uma sauna insuportável.

Ruas de Hyderabad
Ruas de Hyderabad

Era a hora do racionamento: enquanto a luz não voltasse para aquela parte de Hyderabad, uma das maiores cidades da Índia, eu não conseguiria dormir. Fui até o banheiro e tomei um banho completamente frio. Molhado, voltei para a cama e tentei aguentar o calor, procedimento que repeti três vezes até a energia elétrica voltar.

Essa foi apenas uma das experiências que tive ao longo dos seis meses em que morei na Índia, do final de 2011 até maio de 2012. Experiência que mudou minha vida pra sempre, mas não da forma que eu tinha esperado antes de sair do Brasil.

Em 2011, eu vivia os piores dias da minha vida — problemas familiares graves, emprego ruim… e, em meio a isso, resolvi morar um tempo no exterior, trabalhando na minha área de atuação, o jornalismo.

Só que, após meses de procura, não tinha rolado nada — pelo menos não algo que eu conseguisse pagar. Até que surgiu uma vaga numa empresa de tecnologia da informação de Chandigarh, cidade do norte da Índia que tem fama de moderna. Com relutância, aceitei. No meio disso tudo ainda entrou uma viagem de volta ao mundo, como já contei aqui no Papo de Homem.

Sabe aquela história de que a primeira impressão é a que fica? Minha primeira impressão da Índia foi péssima. A segunda também. Pegamos um voo em Londres — Nova Délhi depois de 17 dias na Europa. Quando eu olhei pela janela do avião, segundos antes de pousarmos na Índia, eu não vi nada, nem mesmo a pista do aeroporto, tamanha era a poluição que pairava na capital do país.

Assim que deixamos o aeroporto, percebemos que os meses que ficaríamos ali não seriam só um pouquinho complicados. Seriam desafiadores.

Desafio 1 – problemas de infraestrutura

Do aeroporto, seguimos para a rodoviária. Eu sei que esse tipo de lugar não costuma ser bacana em canto nenhum do Brasil, mas o que vimos lá superou todas as minhas expectativas negativas. Tanto é que aquela rodoviária tinha a fama de pior lugar do mundo entre os estrangeiros que viveram comigo. Paredes quebradas, lixo por todos os lados, lugares escuros e cheiro forte de merda e mijo.

Lixo na Índia
Lixo na Índia

O desafio com a infraestrutura aumentava a cada dia que passamos no país. Foi o começo de um tempo em que a única opção para lavar nossas roupas era um balde e o próprio esforço. Banhos? Quase sempre frios, e eu cheguei no inverno, numa das regiões mais geladas do país.

Quando viajávamos, os ônibus pareciam veículos prontos para entrar no noticiário local. Todos os pneus carecas e com a lataria amassada em cada centímetro, por conta de batidas anteriores.

Ainda tinha o lance da falta de energia elétrica.

Racionamento por lá era coisa séria. Todas as cidades onde estive, até metrópoles com milhões de habitantes, tinham períodos sem energia diariamente, nem sempre de madrugada.

Fazer compras no supermercado ou comida de micro-ondas então… esqueça, não vai rolar. Quer um dado para provar os problemas de infraestrutura da Índia? Segundo uma pesquisa da Unicef, seis em cada 10 indianos não têm banheiro em casa, número que representa mais de 600 milhões de pessoas, gente que faz as necessidades ao relento, por pura falta de opção.

Desafio 2 – as pessoas

Muita gente acha que ele não existe, mas o tal do choque cultural é mesmo um tremendo soco no estômago.

Na Índia quase tudo é diferente. Com 1,2 bilhões de habitantes, o país tem maioria hindu, mas centenas de milhões de muçulmanos. O estado em que morei, o Punjab, tem uma grande população Sikh, religião monoteísta que nasceu na área hoje dividida entre Índia e Paquistão.

Com tantas pessoas diferentes, óbvio que o choque cultural é forte. Da noção de espaço pessoal ao barulho, das questões religiosas ao estilo de trabalho: tudo muda. E não são eles que agem de forma estranha, mas o estrangeiro — no caso, eu. Então, cabe ao viajante entender e agir com equilíbrio, certo?

Sem dúvida.

Só que falar é fácil. Aguentar o impacto do choque cultural é outra história.

Turbante indiano
Turbante indiano

Desafio 3 – o machismo

Sim, o Brasil é machista.

Só que, certamente por fazer parte do gênero que sofre menos nessa questão, eu poucas vezes me preocupava com isso antes de viver na Índia. Se aqui o problema é grave, lá ultrapassa todas as barreiras que conhecemos. Há, é claro, o choque cultural novamente envolvido, mas tem coisas que ninguém é obrigado a aceitar. Fora que o próprio povo indiano sofre muito com isso, como provaram as manifestações por conta do estupro coletivo que aconteceu meses atrás, em Nova Délhi.

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Homens que encaram mulheres o tempo inteiro, falando coisas que felizmente estrangeiros não entendem. Homens que tentam tocar essas mulheres, uma atitude quase corriqueira. Estupros infelizmente comuns. Chefes que sequer escutam o que as funcionárias têm a dizer, tratando mulheres como lixo e dando tapinhas no ombro de caras preguiçosos.

Some a tudo isso a falta de mulheres do país, num problema que cresce como uma terrível bola de neve — na Índia, bebês mulheres são mortas com frequência, a ponto do ultrassom ser prática proibida. Segundo uma matéria do The Times of India, para cada 1000 meninos, cerca de 70 meninas menores de seis anos são mortas. E muitas mulheres adultas não saem ou saem pouco de casa, o que explica porque as ruas do país parecem estar sempre lotadas somente de homens.

Homens que raramente têm contato próximo com mulheres antes da vida adulta.

O que a Índia me ensinou

Sim, houve desafios. Mas isso não significa que minha experiência na Índia tenha sido ruim. Mesmo com todos os problemas, de vez em quando eu tenho saudades do que vivi lá e até vontade de voltar. Na Índia, viajei de norte a sul, por isso falo com convicção: o país é incrível, inacreditável. Inclusive, são exatamente essas as palavras usadas na propaganda oficial da nação.

Não te prometem um país lindo, organizado e limpo. Prometem uma experiência marcante, para o bem e para o mau. Lá, não vale a regra do ame-o ou deixe-o. Qualquer pessoa que tenha somente um desses sentimentos não conheceu a Índia real, que inspira grandes doses de amor e ódio ao mesmo tempo.

Varanasi, Índia
Varanasi, Índia

Na Índia, dormi no deserto. Andei no lombo de camelos. Visitei vilas perdidas no tempo, andei pelo Himalaia e nadei em rios sagrados. Mas também fiz coisas normais, do dia a dia, como trabalhar, pagar contas, conversar com colegas de trabalho e tentar viver como um local. Com isso, fiz amizades duradouras, com indianos e estrangeiros que encontrei por lá.

Os problemas de infraestrutura me ensinaram várias coisas, inclusive a valorizar o Brasil. Temos, sim, milhares de problemas, mas muitos países — a maioria deles, inclusive — são menos desenvolvidos que o nosso. Também aprendi a valorizar mais as coisas simples da vida, como a possibilidade de tomar uma banho quente ou ter energia elétrica 24 horas por dia, coleta de lixo na porta de casa ou um sistema de transporte público lotado pelos padrões brasileiros, não indianos.

Ao mesmo tempo, aprendi que não preciso do monte de tralhas que nos acostumamos a acumular. Uma vida sem tanto consumismo não é só possível, mas desejável. Imagine o que aconteceria com o mundo se todos os indianos resolvessem (e pudessem) ter um carro do ano na garagem ou o mesmo padrão de consumo da classe média brasileira?

O choque cultural, por mais doído que seja, sempre é positivo. Ele ajuda a alargar o modo de pensar e a visão que temos do mundo. Quem viaja pelo ocidente ou mesmo dentro do Brasil sente um pouco desse impacto, e normalmente sai fortalecido e com a mente mais aberta após o encontro com novas culturas.

Só que os lugares que brasileiros costumam viajar são predominantemente cristãos, religião que transmite mais ou menos os menos padrões em todos os lugares do mundo. Fora quando não são sempre Miami e a Disney.

Na Índia, fui forçado a entender que o mundo vai muito além da lógica judaico-cristã, que inclusive não tem a menor lógica para a maior parte das pessoas que vive no planeta. Entendi que o preconceito existe sim e que ninguém, nem mesmo eu, está completamente livre dele. O preconceito nasce exatamente do medo e da incompreensão com o diferente.

Enquanto vivia na Índia, precisei aceitar que outras pessoas têm o direito de ter outros valores e outra forma de ver o mundo.

Enfim, eu já disse antes aqui no PdH que viajar mudou minha vida. Morar na Índia fez mais do que isso, já que lá eu fui além do turismo. Tive que viver a vida real, o típico dia a dia, que costuma ser chato e explorador em qualquer canto do planeta. Vivi sim algumas dificuldades, mas eu só ganhei ao sair da minha zona de conforto.

Golden Temple
Golden Temple
Jaisalmer, Índia
Jaisalmer, Índia
Kerala
Kerala
Mulher trabalhando na Índia
Mulher trabalhando na Índia

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.