1. A Charada de Drummond
Este era para ser um texto sobre o desenhista Paolo Eleuteri Serpieri, mas não vai dar. Não vai dar porque, entre o tema e a realidade, entre o mote e a inspiração, nesse caso, está algo mais. Algo, digamos assim, intrometido. O que seria?
Bom, para esclarecer o assunto, proponho que brinquemos de charada com poeta Carlos Drummond de Andrade. Vamos lá.
O que é o que é: é engraçada, está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não importa o que vai pela frente, ela se basta.
São duas luas gêmeas, em rotundo meneio.
Anda por si na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente.
Diverte-se, segundo o poeta, por conta própria.
Na cama agita-se. Montanhas avolumam-se, descem. Ondas batendo numa praia infinita.
E vai sempre sorrindo, vai feliz, na carícia de ser e balançar.
Se você ainda não descobriu a resposta dessa charada, amigo leitor, apesar das dicas e das ilustrações de Serpieri, então o próprio Drummond responde:
“A bunda é a bunda, redunda.”
É redonda, e retumba, e além de nadegamente redundante, ela é também ambulante, até porque a bunda feminina é mais linda quando anda, tanto que seu andar tem um nome que só a ela pertence: rebolado.
A bunda também é, para o homem brasileiro, onipresente, pois está por todos os lugares que sua vista alcança, nas ruas, nas calçadas, nas praias.
E é, ainda, sua maldição, já que, onipresente, desvia sua atenção e impede que se mantenha concentrado nos seus deveres perante a civilização.
Talvez um sociólogo, num desbunde teórico inspirado na maior cara-de-pau, pudesse desenvolver uma tese que justificasse toda nossa história de crises econômicas e subdesenvolvimento social argumentando que aqui, no Brasil, a bunda abunda.
Ou seja, o motivo de nosso atraso é que a natureza já prestigiou nossas mulheres com aquilo que mais apreciamos, e isso nos distrai de todo o resto. Nessa tese atrevida, seria demonstrado que não temos apenas uma população de homens que cultuam desavergonhadamente a mencionada parte da anatomia feminina.
Temos, ainda, mulheres estupendamente privilegiadas pela natureza, no que diz respeito a essa mesma região do corpo humano.
2. Serpieri e a impossibilidade de falar de Serpieri
E quem sabe essa tese justificaria minha própria dificuldade de escrever aqui uma biografia detalhada e cronológica de Serpieri. Esse era o projeto inicial, como fiz com Milo Manara e Georges Pichard.
Conforme orientação dos editores, eu deveria relatar, minuciosamente, toda a carreira de Paolo Eleuteri Serpieri, começando com seu nascimento em Veneza, no ano de 1944; depois passaria para seus estudos na Academia de Belas Artes de Roma, onde foi aluno de Renato Guttuso; em seguida, contaria sobre o início de sua atividade como desenhista e pintor em 1966, sem deixar de mencionar que chegou a pintar afrescos no período.
Também fui instruído a relatar como Serpieri flertou com o expressionismo antes de se dedicar ao figurativismo, e que seus primeiros trabalhos nos quadrinhos foram com westerns.
E minha incumbência era concluir essa longa e detalhada biografia com o seguinte depoimento de Serpieri a respeito de seu estilo:
“Pessoalmente, sou mais atraído pelo realismo cinematográfico, com sua divisão em sequências, seu tratamento das luzes e sombras. Busco uma certa teatralidade em minhas imagens, como numa pintura barroca e obras de Caravaggio, particularmente sua forma de posicionar a luz, de combinar os contrastes. É isto que me interessa no barroco: a teatralidade e a dimensão decorativa.”
Mas alguém vai ler?
E mesmo que lesse, é difícil pra mim laborar como um profissional sério e disciplinado neste texto.
Ao selecionar as imagens que ilustram a pretensa biografia de Serpieri, um dos aspectos de seu talento salta tanto aos olhos, e me tira tanto a concentração, que mal consigo pensar em outro assunto.
Tudo é ofuscado, em nossa perspectiva masculina, reducionista até, pela eloquência do talento de Serpieri em desenhar aquela parte da anatomia feminina que abunda neste texto.
Mas, se não posso falar de Serpieri com todo o profissionalismo que se espera de mim, quem sabe não posso tentar cumprir ao menos parte do meu dever falando dela, a sua obra máxima: Druuna.
Serpieri publicou Morbus Gravis, a primeira aventura de Druuna, em 1985. Mas encontrou problemas com a censura, razão pela qual precisou trocar de editora a fim de publicar as outras aventuras da sua personagem predileta.
Seguiram-se Creatura (1990), Carnivora (1993), Mandragora (1995), Aphrodisia (1997), The Forgotten Planet (2000) e Clone (2003).
Apesar de seu forte conteúdo erótico e de cenas de sexo que só ocorreriam em um delírio onírico, as histórias de Druuna estão longe de ser simplórias. Como protagonista em um mundo degradado, corrompido, repleto de criaturas lovecraftianas, a personagem expressa o contraste entre nosso desejo, sempre vital, sempre voluptuoso, com a degradação da realidade humana, com o poço profundo onde habita nossa animalidade.
A carne que nos faz desejar e a carne que desejamos, é a mesma carne que, em nós e nos outros, está inexoravelmente sujeita à doença e à decomposição. É um paradoxo, entre desejo de vida e realidade da morte, que Serpieri soube muito bem retratar em suas obras.
Em Anthologie de la Bande Dessinée Érotique (Beaux Arts éditions, 2012), Vicent Bernière associa essa escolha de Serpieri ao contexto da época. Em 1985, o medo da AIDS varria o mundo, contaminando o imaginário da humanidade:
“É o surgimento da AIDS que muda tudo. Paolo Serpieri e sua criatura Druuna encarnam bem esse mal e a miríade ecos na mentalidade da época. Heroína de um futuro pessimista, bomba sexual, Druuna é um milagre. Os corpos dos amantes, devastados pela morte, contrastam com o dela, perfeito, com suas curvas sensuais e sua pureza imunológica”.
Mas acho que essa interpretação é muito reducionista. Em uma entrevista a Didier Pasamonik, Serpieri esclarece esse enquadramento da mulher vigorosa e sensual numa realidade corrupta:
“É como uma pintura que contrasta um personagem muito simples sobre um fundo muito distorcido, atormentado. Esse contraste acentua o símbolo da carnalidade vigorosa, que Druuna representa”.
E é a carnalidade, e não a pureza, que Serpieri tenta retratar com Druuna:
“Psicologicamente, a mulher é a portadora do futuro, isso é certo. Mas ela é também a outra face da humanidade, ao lado dos homens. Dito isso, ela é para mim essa dimensão carnal, erótica, o símbolo da pulsão da vida que nos anima. Se eu tivesse de desenhar um homem nas mesmas condições, eu não seria capaz de transmitir esse mesmo tipo de sentimento.”
Muitos dizem que a modelo brasileira Anna Lima teria inspirado a criação de Druuna, mas isso não é correto. Anna Lima é que posou para a Playboy posteriormente, em uma posição em que Serpieri havia retratado Druuna.
Quando perguntado sobre qual atriz escolheria para interpretar Druuna nos cinemas, Serpieri mostrou-se hesitante:
“É difícil. Quando comecei a desenhá-la, minha fonte de inspiração era Valérie Kapriski. Mas isso foi há alguns anos. Depois, Druuna evoluiu no plano gráfico.
Um de meus amigos diz que Jennifer Lopez poderia interpretá-la, mas não estou convencido. Teria preferência por Monica Bellucci (…) Uma top model brasileira, Anna Lima, que se deixou fotografar em uma pose da Druuna, de costas, ná água, tem uma semelhança impressionante. Mas não é uma atriz.”
Mas, no fim da entrevista, Serpieri deu a dica decisiva sobre o local em que se poderiam encontrar o maior número de candidatas ao papel de Druuna:
“Druuna é uma mulher com temperamento latino que é bem frequente no Brasil.”
E aí retornamos ao assunto inicial, do qual não podemos fugir, por mais que tentemos: o Brasil e a preferência nacional.
3. A Preferência Nacional
Por qual razão, diabos, elegemos a bunda como a “preferência nacional”? A primeira causa é, possivelmente, relacionada como nosso lado mais animal, mais primitivo.
Isso porque uma bunda generosa é resultado do estrogênio, um dos hormônios relacionados à fertilidade feminina.
Bundas arredondadas e firmes, portanto, indicam que a parceira é nova e está predisposta a gerar uma prole abundante. Nesse aspecto, não somos nada mais do que escravos de nossos genes e de seu cego projeto de fecundar todas as fêmeas férteis, prisioneiros do mesmo projeto para o qual, após cumprirmos nossa função de dispersão da carga genética, somos descartáveis, podemos morrer e nos decompor enquanto carne já não mais útil — o leitor percebe a conexão dessa verdade e a ambientação apocalíptica, decadente, retratada nas histórias de Druuna?
Mas, retornando à razão da preferência nacional, seios generosos também são resultado do estrogêneo, e ainda têm a vantagem de nos lembrar a capacidade que a futura mãe teria de alimentar seus filhos.
Temos, portanto, dois aspectos físicos da mulher que, mais que qualquer outro, são vocacionados a atrair nossa atenção.
Então porque não elegemos, como fizeram os americanos, os seios femininos como a preferência nacional? O que determinou nossa escolha?
É aí que entra o fator cultural.
E na relação entre cultura e sexualidade há uma regra de ouro: o proibido é mais gostoso. Como pretendo expor num texto ainda esse ano, a transgressão é um dos principais fermentos da excitação sexual. E, de todas as transgressões, a mais excitante é aquela que tem origem, ainda que remota, num pecado.
Nisso entra a historiadora Mary del Priore e sua teoria de que a preferência nacional tem raízes em nossa formação católica.
É que o Concílio de Trento, convocado pelo Papa Paulo III no séc. XVI para consolidar os fundamentos da fé cristã, proibiu qualquer posição sexual que não fosse o homem por cima da mulher, ambos de frente um para o outro – o tradicional papai-e-mamãe.
Logo, qualquer posição em que a mulher ficasse de costas para o homem, mostrando sua bunda, tornava ainda mais pecaminosa (e, portanto, excitante) a relação sexual.
Outro fator cultural, relacionado ao que é velado, escondido (e, portanto, “púdico”, “supostamente proibido”), reside no fato de que, durante a colonização portuguesa, não era raro ver uma mulher com os seios descobertos andando pela rua, principalmente no período de amamentação — parecia mais simples não cobrir os seios do que os descobrir esporadicamente.
Assim, os seios eram comumente vistos e associados à maternidade.
O bumbum, por sua vez, costumava ficar coberto, e inclusive sua exata forma permanecia oculta, graças a anáguas com armações que avolumavam o vestido.
Isso atiçava a curiosidade dos homens sobre o que realmente havia por trás de todo aquele pano, estimulando suas fantasias ao imaginarem como seriam as nádegas das senhoritas e senhoras que circulavam pelas ruas.
Outro fator é a relação de domínio.
Muitos homens e mulheres apreciam o jogo sexual em que ele fica na posição dominante durante a relação, ainda que seja apenas uma encenação combinada entre um casal que, fora da cama, prima pela igualdade entre os sexos. E nenhuma posição favorece mais essa situação do que aquelas em que a mulher está de costas.
Logo, o principal objeto de desejo seria aquela parte feminina que fica mais em evidência nesses casos.
Mas tudo isso é teoria, apenas elucubrações que não influenciam em nada a preferência nacional.
Essa predileção não precisa de explicações, tampouco que entendamos suas origens. Gostamos, e isso basta. Como disse ainda Drummond, em uma poesia cujo final nos lembra do contraste entre desejo (eros) e morte (tanatos) presente nas histórias de Druuna:
“No corpo feminino, esse retiro
– a doce bunda – é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.”
“Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento…”
“Então, se ponho e tiro
a mão em concha – a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.”
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