Lionel Messi tinha tudo para não ser um jogador de futebol.
Talento nunca lhe faltou, decerto. Aos 4 anos, dava olé nos moleques com o dobro de sua idade. Foi assim no Abanderado Grandolie, pequeno time onde Messi jogou até o dia em que seus pais foram impedidos de acompanhar um dos jogos do filho porque não tinham dinheiro para o ingresso. Depois disso, os pais de Messi tiraram-no do clube.
A história do atual melhor jogador do mundo poderia ter parado aí.
Aos 7 anos, o jogador voltou a integrar uma equipe: o Newell’s Old Boys. Apesar da precoce intimidade com la pelota, Messi, aos 11, descobriu que sofria de uma doença óssea que lhe prejudicava o desenvolvimento físico. Durante mais de um ano e ao custo de 900 dólares por mês, teve de tomar injeções diárias. Sua família não dispunha de tanto dinheiro e seu clube, o Newell’s Old Boys, se recusou a custear o tratamento.
Novamente, uma rasteira da vida.
Foi então que Jorge Messi, pai de Lionel, teve uma ideia: e se o filho fosse oferecido a clubes internacionais? Afinal, eles não tinham o que perder – a Argentina toda estava em crise e, como milhares de compatriotas, a família Messi andava mal de dinheiro.
Aos 13, Lionel Messi foi morar com uma tia na Catalunha. Foi então que um olheiro do Barcelona viu o talento do jovem garoto de 1,40 metro e o incentivou a fazer um teste no clube.
O resto é história. É o vídeo abaixo.
Você tem 10 mil horas para ser foda
À parte o talento, Lionel Messi passou todo esse tempo (dos 4 aos 13 anos) batendo bola, independente se num time ou na pelada de rua. Esse treino – ora em um clube profissional, ora em brincadeira de molecada – colaborou para que ele fosse o que é hoje: o melhor do mundo.
Sem saber, Messi colocou em prática a teoria de K. Anders Ericsson, um importante psicólogo e pesquisador da cognição. Ericsson está começando a ficar conhecido do grande público graças a aos estudos que vem desenvolvendo para compreender como um ser humano comum adquire habilidades de nível épico.
Ele advoga que a diferença entre uma pessoa de desempenho mediano e um expert em uma determinada atividade é de 10 mil horas de prática. A regra serve para absolutamente qualquer atividade que precise de tempo para amadurecer: tocar piano, meditar, praticar tiro ao alvo, administrar empresas, investigar crimes, jogar Call of Duty, praticar cuspe à distância, dirigir etc.
Dez mil horas. É a diferença entre aprendiz e mestre.
Para quem não tem uma ideia muito nítida de um número tão grande, 10 mil horas de treino são equivalentes a três anos e meio de estudo intensivo, oito horas por dia, sete dias por semana. Isso significa treinar inclusive aos sábados, domingos e feriados. E por estudo e prática, entenda-se um treino deliberado e focado, com o mínimo possível de distrações e esforços inúteis. Cada segundo conta.
Se você praticar algo quatro horas por semana, como um hobby, vai demorar 52 anos para acumular as 10 mil horas.
Esta transformação só é possível graças à nossa neuroplasticidade, que é a capacidade que temos de reorganizar estruturas nervosas e mentais em resposta a estímulos e necessidades. É um fenômeno fisiológico que tem uma relação muito forte com o aprendizado. Um exemplo clássico de neuroplasticidade está nos cegos: eles compensam a falta de visão desenvolvendo a audição, o olfato e o tato para níveis acima da média.
Temos essa capacidade operando em todos os instantes de nossa vida, sempre pronta a nos transformar diante de problemas novos. Só que ela demora muito para gerar efeitos de longo prazo.
Uma jornada de 10 mil horas começa com um único passo
Ericsson explica que, para desenvolver expertise sobre algo, é preciso um investimento de tempo e prática para que nossos corpos e mentes desenvolvam processos cognitivos eficientes e rápidos, com base em redes de neurônios, músculos e esquemas mentais fortalecidos e aprimorados depois de um longo processo de trabalho. É preciso se submeter a uma determinada atividade por muito tempo, de forma regular e sistemática, para garantir que as estruturas fisiológicas e mentais que facilitam a prática nao se desfaçam.
Por um lado, 10 mil horas é uma eternidade. Significa que qualquer progresso visível só vai surgir depois de muito tempo de treino. É como se sentir eternamente na estaca zero depois de praticar uma escala de dó maior no piano por horas. A impressão que fica é que a primeira coisa a se treinar é a determinação e a motivação para não desistir durante uma prática tão longa.
Por outro lado, 10 mil horas é pouco tempo. Passa rápido. Se você duvida, pergunte pra qualquer pessoa com mais de 30 anos.
Se pensarmos bem, um treino de 10 mil horas é uma ideia maluca, de certa forma. É no mínimo insano fazer uma projeção de 10 anos tocando guitarra para se tornar um virtuose sabendo que a vida pode acabar de uma hora pra outra sem nenhum motivo. É planejar em cima de especulação pura.
Mas, perceba, esta teoria faz sentido pelos mesmos motivos. A vida é curta e pode acabar a qualquer momento. Sendo assim, por que não passar o pouco tempo que nos resta fazendo algo significativo?
No pain, no gain
Essa teoria reafirma algo que todos nós já estamos carecas de saber, mas que custamos a aceitar: para um desempenho de nível olímpico, é necessário treino, dedicação e investimento (tempo, dinheiro, relações etc.) de nível olímpico. Nada menos que isso.
E continuamos tocando nossas vidas acreditando que é possível burlar esta regra. Procuramos sempre o curso de inglês que se propõe a zerar o assunto em dois anos, ou o professor de guitarra com o método milagroso de um ano, e a academia de jiu-jítsu que sobe os alunos de faixa mais rapidamente.
Em nossas práticas, procuramos fazer aquilo que já fazemos com mais facilidade, e evitamos aqueles que dão mais trabalho e dor de cabeça. Buscamos uma gratificação, uma sensação de recompensa que nem sempre se traduz em desenvolvimento de uma habilidade.
Faz todo sentido do mundo não querer perder tempo e fazer valer cada hora de estudo investida, mas não é isso que fazemos. Nos contentamos com medalhas e diplomas que nem sempre correspondem ao nosso progresso real. Supervalorizamos nossos diplomas para descobrir, recém formados, que não passamos de jovens crus que não entendem nada do próprio trabalho.
Link YouTube | Clique em CC e escolha a opção para mostrar legendas em português
Ao colocar o treino continuado na base do aprendizado, Anders nos chama a atenção não somente para nossas próprias falhas, mas para os problemas dos modelos educacionais atuais. Temos hoje um modelo escolar que não tira proveito da capacidade neuroplástica de crianças, e nem sequer cogita educá-las visando esse grau de expertise.
Temos um modelo que tolhe muito mais do que estimula, numa perda progressiva que acompanha a idade da criança. Aos poucos, transformamos pequenos gênios em jovens de intelecto mediano e adultos medíocres.
Ericsson, com sua teoria, nos faz uma provocação sobre como levamos nossas vidas e sobre o que fazemos com o pouco tempo que nos é dado. Nos contentamos com a nossa zona de conforto ou buscamos aprimoramento? Nos distraímos em nossas atividades ou praticamos de forma focada? Buscamos nos conhecer e nos transformar ou viramos autômatos zumbis? Como administramos os custos de nosso treino?
Afinal, qual é a sua relação com seu próprio desenvolvimento?
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.