A gaúcha Luciana aperta o passo nos últimos 10 metros que separam a portaria do condomínio e o salão de festas. Hoje é o grande dia e ela está atrasada. Depois de 2h40 de ônibus de Santa Maria a Porto Alegre e de mais 1h30 até o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o avião ficou taxiando por outros 40 minutos, o que serviu apenas para aumentar a ansiedade da administradora. Aquela seria sua primeira vez. Para não fazer feio, arrasta consigo uma única mala que, apesar de visivelmente pesada, não contém sequer uma peça de roupa. A bagagem é composta exclusivamente por papéis de carta.
São aproximadamente mil itens – todos repetidos – que a especialista em finanças traz ao tradicional encontro semestral de colecionadores de papéis de carta. Luciana debuta na décima sexta edição do evento e, assim como ela, outras 25 mulheres estão ali com os mesmos objetivos: comprar, vender, trocar e apreciar folhas com inscrições carinhosas e estampas que inevitavelmente tiram daqueles lábios femininos expressões como “ai, que coisa mais liiiiiinda!”, ou então “olha, que desenho superfooooofo!”.
Quando Luciana chega, as mesas já estão postas, porém os salgadinhos e refrigerantes enfileiram-se noutro canto, numa bancada à parte, como se rejeitados pelas mulheres que ocupam o salão de um prédio de classe média-alta no Itaim Bibi. Sobre as mesas, empilham-se pastas abarrotadas de envelopes, cromos e folhas de variados tamanhos, desde aqueles com área de 2 centímetros quadrados a A4. Também há algumas calculadoras e listas. Com exceção de uma senhora com traços orientais que não mais se encanta por aquele sem-fim de delicadeza e fofura, as mulheres zanzam de mesa em mesa com avidez, tal qual um carrossel ligeiro e bem orquestrado. Aquele rodízio daria inveja aos marronzinhos da CET.
Luciana junta-se a um grupo de três mulheres e logo desfaz sua mala. Assim, sem cerimônia, a magia está feita: a gaúcha tem nas mãos o Santo Graal, a caixa de Pandora ou algo que valha o brilho que dos seis olhos alheios emana.
Luciana Ceccim Morales acumula mais de 20 mil itens, descontados aqueles repetidos que trouxe consigo ao encontro. Sua paixão começou aos 6 anos, em Santa Maria, quando sua avó, dona de uma papelaria, lhe deu de presente folhas com gravuras de bonequinhas japonesas. Luciana guardou algumas delas e trocou os demais com colegas, o que colaborou para que completasse a primeira pasta – que, para os colecionadores com muitas peças e pouco tempo para contá-las uma a uma, é a unidade de medida apropriada, assim como o dracma troy é para um joalheiro inglês, sendo que uma pasta corresponde em média a 75 papéis. Hoje, Luciana tem um armário dedicado à coleção que, segundo avaliações dos irmãos quando querem provocá-la, vale um carro zero quilômetro. “Eles devem ter razão. Deve valer sim uns 20 mil reais.”
O valor é especulado. Luciana nunca quis vender sua maior riqueza, nem mesmo em tempos de quebradeira global e timidez na redução da taxa Selic. Inclusive, seu julgamento para o momento financeiro nebuloso é que há expansão macroeconônica para os neoliberais que apostam no livre comércio dos papéis de carta. “O mercado no Brasil é muito pequeno. São poucas as opções.” O nicho da administradora reside além-fronteiras: por mês, Luciana deixa até 400 dólares – aproximadamente 950 reais – em portais on-line do Japão e no Ebay, maior site de compra e venda do mundo. “Na internet, tem meninas que cobram até 30 reais a folha.”
— Gente, um minutinho, por favor – grita Flávia Romanha, organizadora do encontro, com os braços em riste para enfatizar o pedido verbal. Depois de conseguir – com certo custo – o silêncio no salão, faz o pronunciamento. – Uma empresa soube do nosso encontro e mandou um bloquinho de papéis para cada uma de nós.
As outras 25 colecionadoras vibram ao mesmo tempo, num frêmito que reverbera no pequeno salão inteiro, o que dá a impressão de que o local é a geral do estádio do Morumbi.
— A única coisa que a gente tem de fazer – continua Flávia, depois de contidos os ânimos – é escrever à companhia o que a gente achou dos papéis. Comentários, críticas, qualquer coisa, e enviar à empresa.
O mais disputado foi o bloco da Pucca. Mas nem só de Pucca, Hello Kitty, Mickey, anjos, ursinhos e outros animais felpudos vivem os ilustradores de papéis de carta. A imaginação vai longe e dá trabalho às caçadoras devido à imensa fauna. Flávia já capturou alguns menos comuns entre as aficionadas, como um do time de futebol americano Miami Dolphins, um da equipe de beisebol Florida Marlins e um do Sesame Street. Troca ou vende todos eles. Os preços variam de 80 centavos a 4 reais, dependendo da antiguidade, raridade, procedência e, claro, fofura do tema. Há ainda aqueles que não têm cotação devido à afinidade sentimental. “Eu tenho um papel de carta feito de papiro que uma vizinha me deu de presente. Ela comprou no Egito.”
Flávia é quem organiza o encontro semestral há uma década. Graças às reuniões, em 2004, a bancária que tem MBA em Finanças chegou ao papel de carta de número 19 mil. Naquele ano, a RankBrasil, organização responsável pela homologação de recordes nacionais, enviou um representante para auditar sua coleção. Foi então que Flávia assumiu o posto de maior colecionadora de papéis de carta no país. É dela grande parte dos mais de 104 mil itens de todas as outras 26 participantes do evento e, a cada encontro, Flávia sai com mais 100, 120 papéis novos.
Assim como um Tio Patinhas enciumado de sua moedinha da sorte, Flávia guarda o papel de carta de número 1. É um Hello Kitty, coleção Quem me quer. Presente do pai quando a menina de 10 anos observava todas as coleguinhas de escola fazendo trocas durante os intervalos de aula. Desde aquela primeira folha com a gravura de uma bonequinha e um arco-íris, ela desenvolveu o know-how do hobby: sabe, por exemplo, que os modelos nacionais são numerados em sua maioria, o que facilita a identificação do que ela já tem e do que ainda falta. Por isso, apesar de achar que “Hello Kitty é tuuuudo de bom”, a produção brasileira é sua favorita.
Os papéis brasileiros também agradam a Yuri Hasimoto. Ela é a mais senhora do grupo e está entediada. No alto de seus 42 anos, traz na cabeça alguns fios brancos e quase nenhum interesse pelos papéis que se esparramam sobre as mesas de maneira displicente. A nikkei de cerca de 1,50 metro não vagueia pelas mesas, não comemora os bloquinhos gratuitos, não batalha pelo modelo da Pucca e não futuca a mão nas pastas alheias em busca do Pateta perdido. Yuri se diz cansada de tudo isso. Trouxe o espólio de 200 itens – todos nacionais – para o encontro para se livrar de um por um. É raro abrir a boca, mas quando o faz, é para oferecer às colegas o que lhe restou de mais de 30 anos de coleção. Vende cada folha a 1 real, qualquer uma, desde aquela com balões coloridos na parte superior até a do urso caramelo com olhar pedinchão. Naquela manhã, Yuri fez 30 reais, montante suficiente para comprar o que deseja no momento: mais um CD de rock. Yuri quer se desfazer do seu xodó anterior por conta de um novo amor:
— U2.
Se por um lado Yuri quer botar um ponto final no hobby de uma vida e, assim, deixar o círculo de colecionadores, há quem deseje o oposto. E é no ensejo de aumentar a roda que uma mulher de cabelos curtos propõe a Flávia “uma Bienal de Papel de Cartas, nos moldes daquela outra, a do fim de 2008”. Se depender da empolgação das colecionadoras, não haverá vazios no sonhado evento, mas sim muitos sons, todos ao mesmo tempo, e algumas palavras mais arrastaaaaaadas. Vai ser uma fofura só.
publicado em 28 de Maio de 2012, 12:28