"Hard Balling" | Mandando o papo mais reto quanto possível nos apps de encontro

Deixar na descrição do perfil exatamente o que se procura de um match perfeito é algo que veio para facilitar as relações?

Hard Ball é uma expressão em inglês que quer dizer jogar da forma mais implacável possível (mas sem quebrar as regras). Hardballing, no mundo dos aplicativos de encontro, significa ser o mais direto e reto possível.

Pode ser usado tanto para dizer: “procuro sexo casual, especificamente neste sábado durante a tarde”, quanto para definir “busco alguém para um relacionamento sério, que seja da minha religião e queria construir uma família nos próximos dois anos”.

Deixar na descrição do perfil exatamente o que se procura de um match perfeito é algo que veio para  facilitar as relações?

É o fim dos joguinhos?

A repórter Alice Broster do site Bustle analisa que esse “papo reto” (que já rolava nas redes há muito tempo) ganhou força e popularidade no cenários pandêmico por alguns motivos:

  • As pessoas passaram mais tempo sozinhas e então passaram a ter mais clareza do que queriam 

  • Diante das limitações de interação social e dos riscos de contato, desperdiçar tempo e o risco de contágio com um date pouco promissor se torna mais aversivo.

Esse “papo reto” também abre espaço para encontros com intenções mais declaradas e, de certa forma, contribui para uma certa responsabilidade afetiva. 

Companhia virou vaga de emprego?

Ellen McRae escreveu que Hardballing é praticamente se relacionar como se fosse um CEO estabelecendo uma demanda:

“Procura-se amante para trabalhar em turnos noturno e finais de semana. Deve ter carro próprio, ser flexível na cama e amar até minhas falhas. Um sorriso bacana é imprescindível, mas não precisa se dar bem com a minha mãe. Início imediato.”

Se por um lado pode ser uma forma esclarecida de se relacionar, sabendo o que se quer, por outro lado também pode se tornar uma forma autocentrada de ver a relação (e essa é uma preocupação pessoal minha).

Automatizando as relações

É muito bom estar com alguém que está na mesma página que você, que tem valores semelhantes aos seus, que está traçando objetivos convergentes. 

Enquanto  esse papo direto e reto hardballing for sobre entender que relacionar-se não é um caminho padrão — conversa > sexo > encontros > namoros > noivado > casamento — e for sobre entender que, uma vez que existem diversas formas de se relacionar, é bom esclarecer que caminho você deseja trilhar,  é possível ver diversos benefícios nessa prática.

Mais consentimento e menos previsão

Pessoalmente, achei ótimo o conceito do papo reto hardballing e quero usar isso pra vida. 

[Não só para encontros afetivos, românticos, sexuais como também para encontros com amigos, familiares. Mandar aquele “Alô pessoal, hoje eu não vou ficar pro aniversário porque não estou de bom humor, só vou dar um abraço e vou descansar para não brigar com ninguém”.]

Nada é só bom e entender isso é um caminho para cultivar senso crítico e equilíbrio nas nossas escolhas. 

Diria que o hardballing pode ser de grande valia quando usado para alinhar expectativas (e até para assegurar consentimentos), mas não para garantir algum tipo de previsão e de controle.

Alertas amarelos

Me lembro de uma vez em que eu tive uma série de encontros com uma pessoa que me lá pelo 5º café me perguntou o que eu pretendia com aquela relação. Disse estar gostando de mim e eu eu respondi que não tinha um relacionamento no plano, que também estava gostando do que vinha surgindo e que iria me permitir apaixonar-me se aquele fosse o caso. 

Não foi. Quando falei sobre me distanciar fui cobrada de “irresponsabilidade afetiva”. 

Uso este exemplo para lembrar que podemos ser o mais sinceros sobre nossas intenções e mesmo assim, os cenários podem mudar e expectativas podem ser frustradas. 

Ao mesmo passo que precisamos aprender a colocar nossas expectativas na mesa, também precisamos aprender a lidar com frustações. Os acordos das relações humanas podem (e em certos momentos devem) ser revogados para o bem de ambas as partes.

Duas pessoas podem concordar plenamente em um date focado em sexo: uma transa inclusive já planejada com base em preferências de ambas as partes. E mesmo assim ambos têm plenos direitos de chegar lá e dizer “Quer saber? Não quero mais”.

Me parece imprescindível olhar por esse prisma e citar esse caso para quem o tal “papo reto” não se torne um contrato que coloque especialmente mulheres em relação de vulnerabilidade a violências sexuais ou a relações abusivos, porque “ela haviam dito que queria”, “aceitado as condições”, ou algo do tipo. 

As condições mudam o tempo todo. 

Deixe espaço para o imprevisível

Precisamos de equilíbrio. E de atenção para que essa “retidão” não se torne uma rigidez autocentrada: “eu quero isso, se não quiser cai fora.”

Afinal de contas, a vida se envereda também por caminhos que a gente não prevê, não controla e por vezes nem chegou a sonhar com essa possibilidade. 

É preciso ter espaço para imprevistos. Para que de um sexo casual possa crescer afeto ou para que de um plano de casamento, possa se decidir pelo término, pela solteirice. 

É preciso ter espaço para descobrir que uma relação se desdobra não só pelo alinhamento de um com outro (até porque pode haver um terceiro, quarto, etc), mas também pelo que surge a partir do encontro destas pessoas. E o quê surge não poderia ter sido descrito ou esclarecido previamente.


publicado em 14 de Março de 2022, 19:55
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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