Era sábado cedo e eu estava indo à padaria já naquele horário culposo de acordar tarde no final de semana e ir comprar pão. Dirigindo, minha barriga ainda vazia deu um ronco bem alto para avisar que queria comer aquilo que cheirava à distância, um aroma delicioso que me chamou a atenção.

Como sempre, o frango de TV que gira sem parar dentro daquele forno enorme estava atiçando todos que passavam distraídos por ali. Meu olfato também gosta de dar pitaco sobre o que comer.

Os sentidos gustativos e olfativos formam uma bela dupla. São de grande importância para a formação do sabor em nosso cérebro e trabalham juntos grande parte do tempo. Mas ainda temos os outros sentidos que devemos estimular para que o conjunto da obra fique completo.

Manuel Guimarães, em seu livro À mesa com histórias, conta como o culto à comida é, desde sempre, feito pelos humanos. Passamos pela época de coleta e caça, pelos cultos religiosos, escassez, passamos pela industrialização. Produtos do Novo Mundo nos séculos XV e XVI mudaram os hábitos alimentares na Europa. Novas técnicas, novos estudos.

Hoje, comemos uma cultura de lá, difundida com produtos que têm sabor de cá. Dos países frios e aqueles com tradição de caça vieram os carnívoros e nunca mais conseguimos nos separar do sabor único que uma carne braseada tem. Dos índios temos as referências ecológicas. Da cozinha caipira, a ideia de tipicidade que nos abraça. Assim, toda a história do mundo da culinária é, na verdade, um caminhar e uma troca. A natureza nos dá algo e os humanos conferem seu toque pessoal de acordo com suas possibilidades. Isso nos conta a história do mundo. Podemos garfar nossa narrativa.

Carlos Alberto Dória tem um discurso sobre as coisas do comer em seu livro Formação da culinária brasileira (editora 3 estrelas). Ele fala sobre a gastronomia ser “a bola da vez” nos dias de hoje.

“A espetacularização do comer ocupa a cena e esconde o interesse legítimo que temos pelo que levamos à boca. Não é para menos. “Comer” tornou-se hoje uma atividade complexa, multissensorial, a exigir certo “treinamento” do sujeito que se aproxima de um prato construído sob os ditames modernos da gastronomia.”

Nosso cérebro consciente sempre buscou evoluir. O paladar é a nossa conscientização do que temos em nossa boca. O fogo nos ajudou a melhorar nossa alimentação. Os estudos nos ajudaram a alimentar mais pessoas, essa busca incessante que temos com o aprimorar da refeição.

Trabalhei em um jantar onde a temática era culinária espanhola e no cardápio da noite, uma citação da Cantábria (comunidade autônoma espanhola). O chef João Roberto escolheu esse ditado para mostrar como saber se está comendo um prato de terroir verdadeiro.

“Com los ojos cerrados hay que saber donde se está por lo que se come”

Técnicas

Sou sommelier. Faz parte da minha profissão observar as bebidas de perto. Com o tempo, ganhamos muito aprendizado e contamos muitas histórias.

No mundo do vinho, sabemos muito sobre a bebida mesmo de olhos fechados. Cada região do planeta parece ter um código em seu líquido. Muito frutado: América do Sul. Mais complexos e fechados, de um pequeno micro produtor de uma região francesa. Se tiver muita baunilha, tem carvalho americano. Assim se alegram aqueles que buscam em um pequeno gole toda uma sabedoria sobre a terra e como foi trabalhada a vinha.

No Brasil, a cachaça tem uma peculiaridade interessante. Matura muito bem em diversos tipos de madeiras nativas, complexidade de sabores que só existem aqui. O sabor da bebida carrega os largos campos da planta que toma grande parte do país. Ganha cada dia mais respeito pelos seus sabores.

Com a cerveja e seu reconhecimento como uma bebida a ser apreciada, mais do que só entornada, cada garrafa carrega um algoritmo de sabores, texturas, cores e espumas. Agora os lúpulos são observados de perto. Podemos escolher variedades mais cítricas ou mais terrosas. Mais floral ou mais herbal. Os maltes podem ser claros ou escuros. As leveduras são criaturas com muita personalidade.

Em tudo que formos buscar nos especializar, podemos estudar com uma lupa para ver mais de perto as idiossincrasias. Você sabe do que gosta? Encontrou neste vasto mundo de sabores, aromas, texturas e formas o que mais lhe agrada em determinada época de vida ou ocasião mais específica?

Leia também  Como fazer carne seca desfiada

Talvez entender como processar toda essa informação hoje em dia não seja tarefa fácil. Mas para ser mais livre é preciso entender onde pode se jogar.

Dicas de treino do seu paladar

Anotei alguns fatores que podem ajudar quem está em busca de estar mais atento ao que come e ao que bebe.

1. Sentir o aroma do que se come

Sem isso não tem como você formular o sabor de forma plena.  

Então, para auxiliar seu cérebro, quando for ao mercado pegue hortaliças, frutas e verduras para cheirar. Abra os temperos em casa, especiarias, ervas e condimentos tem uma complexidade incrível. Temos muitos receptores no nariz e eles estão prontos para nos ajudar. Óleos essenciais de terapia são um começo. Tem o aroma bastante tonificado. Flores por aí são obrigatórias.

Entre em uma floricultura ou procure um jardim caprichado. Sinta o aroma do que comer e beber.

2. Olhe para o que está comendo

Quando observamos as cores, as formas e a aparência esses elementos nos dão mais dicas. Hoje em dia as embalagens também contam histórias. As cores ajudam a dar sensações variadas.

Cores quentes, cores frias.

Isso estimula a formação do sabor dentro de nós. Depois que tiver olhado, feche os olhos. Deixe que os outros sentidos trabalhem com mais foca também.

3. Saboreie sem pressa

Caso você vá comer rápido, provavelmente não vai sentir direito o que comeu. No outro dia é sempre mais difícil de lembrar aquilo que consumiu se não estava prestando a atenção.

Assimile o que está acontecendo, repare nas sensações que o alimento está causando.

4. Descreva o que sente

Troque ideia com outra pessoa. Escreva sobre isso. Elogie quem produziu. Identifique os pontos que agradam e os que não são tão interessantes.

Avalie.

5. Ouça o que está comendo

A consistência muitas vezes é também uma orquestra que diverte o paladar. Coisas crocantes parecem que são impossíveis parar de comer.

Croc, croc, croc.

6. Diminua

Sal, açúcar, alimentos processados, gordura. O consumo em excesso dessas substâncias não trazem benefício nenhum. Somente o cérebro acha que é legal. Seu corpo sofre com abusos de químicos.

Seu paladar vai ficando viciado em sabores explosivos.

7. Beba água

Sempre. Ela limpa o paladar sempre que necessário. Quando estiver provando coisas diferentes, ajude as papilas.

8. Respeite a necessidade que seu corpo tem 

Às vezes seu organismo dá sinais que precisa de algo. Seu paladar se tiver bem treinado vai saber passar essas informações melhores para você.

As vezes o corpo pede algo com a necessidade de nutrição.

9. Experimente a mesma coisa feita com diversas técnicas

Batata: cozida, assada, no vapor, frita. Purê, chips, crisp, palha, canoa. Com manteiga ou com azeite. Fria e quente. Com sal, sem sal. Com cheiro verde ou alecrim. Com casca e sem casca. Uma batata nem sempre é a mesma. Prova tipos diferentes de batata. É o quarto alimento mais consumido no mundo. Imagina quantos sabores diferentes podem existir.

10. Estude aquilo que você gosta

Muitos fazem do prazer um estudo, um hobby. Beber um bom vinho pode ser também uma forma de estudar mais sobre a cultura de outros países. Um sakê pode contar a história do Japão. Os pratos tem tradições familiares. Uma especiaria pode levar você ao outro lado das Índias.

Um sabor pode te emocionar.

11. Respeite alguns rituais que alimentos e bebidas têm

Se interesse sobre questões culturais daquilo que está ingerindo. Dá valor ao produto.

12. Mais importante de tudo: seja uma pessoa curiosa

Saia da sua zona de conforto.

Resultado

Encontrar novos prazeres é uma jornada. Buscar aperfeiçoar a maneira como conduzimos nossa vida.

Se os alimentos e bebidas que ingerimos são nosso combustível de vida, que tal prestar mais atenção ao que está acontecendo? Ganhe com o tempo e sem perceber uma alegria imensa em uma simples mordida. Não é para se tornar algo extremo.

É para que a gente consiga conviver melhor com a formação do nosso paladar e vivenciar os paralelos que nos são possíveis.

Bia Amorim

Formada em Hotelaria e pós-graduada em Gastronomia, com especialização em Sommelier de Cervejas. Está no Twitter (<a>@biasamorim</a>) e Instagram (<a href="http://instagram.com/biasommelier">@biasommelier</a>)