Quem ainda tem preconceito com jogos eletrônicos está perdendo o desenvolvimento de toda uma nova veia artística e interativa. Mais do que isso, está abrindo mão de um entretenimento que tem muito a oferecer a muitos tipos de pessoas: há quem só passe o tempo, há quem encare com toda a seriedade, há quem colecione, quem ignore todos os outros jogos em favor de um único favorito... e agora há quem queira enxergar neles paralelos com religião. Ao menos em um deles, chamado Chain World.
Todo ano, em São Francisco, durante o evento chamado Game Developers Conference, acontece uma espécie de discussão sobre videogames que muito pouco tem a ver com a ideia que a maioria das pessoas tem de uma discussão sobre videogames.
O Game Design Challenge, como é chamado esse evento dentro de outro evento (quase que como um Inception), chama os mais visionários criadores de jogos – aqueles que mais pensam fora da caixa e usam seu trabalho para expandir a gama de significados que os jogos eletrônicos sequer tentam expressar – e coloca diante deles um desafio temático de game design. Em 2011, o desafio era aproximar games e religião.
Poucos meses depois, o jogo que venceu o desafio foi o Chain World. Logo de cara, o jogo causou devoção, ira e demonstrações de fé, como a constante discussão que se seguiu com as diferentes interpretações dos seus 9 mandamentos, fato que ocasionou guerras de ideais e invocações de morte aos detratores.
“Nós somos como deuses para os que vêm depois de nós”
Segundo a Bíblia, antes de haver o mundo, havia um Deus. Antes de haver Chain World, por sua vez, havia Jason Rohrer. O game designer americano, respeitado por jogadores e criadores de jogos graças as experiências inventivas de Passage (que fala sobre morte) e Sleep is Death (uma piracão a dois em que um jogador é dependente do outro em um nível fundamental), abordou o desafio de aproximar os games da crença religiosa por um ângulo oblíquo. Sendo ateu, ele não pensou em Deus, Alá, Maomé ou Buda,mas sim no seu avô.
Ao apresentar a ideia durante o evento, Rohrer contou a história de seu avô, que foi prefeito de uma pequena cidade americana há muitos anos e promoveu obras que alteraram características da cidade e que permanecem até hoje. “Nós nos tornamos como deuses para os que vêm depois de nós”, conta ele, ao relembrar que a sua família costuma fazer pequenas viagens até a cidade que um dia foi governada pelo seu avô, visitando as suas obras como se fossem uma espécie de memorial. Foi com essa ideia que o Chain World foi baseado.
Descrever o Chain World como um jogo “único” é uma inevitabilidade, porque o jogo só existe dentro de um pen drive, no mundo todo e esse item não pode ou deve ser copiado. Tendo a oportunidade de estar com esse valioso item em mãos, eis os 9 mandamentos que devem ser seguidos para que a experiência valha:
1. Rode o Chain World via um dos atalhos “run_ChainWorld” do pen drive.
2. Comece um jogo single-player e escolha o mundo “Chain World”.
3. Jogue até morrer uma única vez.
3a. Fazer placas com texto escrito é proibido – as suas obras devem falar por si mesmas.
3b. Suicídio é permitido.
4. Imediatamente após morrer e ressurgir, volte ao menu inicial.
5. Espere que o jogo salve.
6. Saia do jogo e espere que o script copie o estado do undo Chain World de volta para o pen drive.
7. Passe o pen drive para alguém que expresse interesse.
8. Nunca discuta com ninguém o que você viu ou fez no Chain World.
9. Nunca mais jogue.
A ideia é que o jogo não tenha um estado inicial. Jason Rohrer foi o primeiro jogador. Ele se aventurou e alterou o mundo até morrer e o segundo jogador herdou esse mundo já desvirginado. Cada jogador verá as obras dos seus antecessores, ali, sem explicação, sem legenda, sem “detonado”, e também tentará deixar o seu legado de alguma forma.
Tudo isso só funciona porque o jogo na verdade é um “mod” baseado em Minecraft, um jogo no qual você é livre para vagar por um mundo gerado aleatoriamente, construindo e destruindo livremente tudo o que quiser, tomando apenas o cuidado de usar os recursos naturais para construir abrigo e armas rudimentares para se proteger de monstros que aparecem só à noite.
Em Minecraft, e portanto em Chain World, não há chefão, nem objetivo final. O objetivo é constante, de explorar e sobreviver enquanto deixa a sua marca no mundo. Eu recomendo o jogo para qualquer pessoa que saiba manejar um teclado e mouse, mesmo que nunca tenha manifestado interesse por videogame.
A pureza do Gênesis e a degeneração
Não demorou muito para que o pecado chegasse à “religião” do Chain World. Assim como na história de Adão e Eva, que conseguiram zoar grandiosamente com os planos d’O Senhor logo de saída, o primeiríssimo jogador de Chain World depois de Jason Rohrer já chutou o proverbial pau da barraca.
Jia Ji, um desenvolvedor chinês semi-anônimo, foi o felizardo que pegou o pen drive direto da mão de Jason Rohrer na GDC. Ambos não se conheciam – Rohrer observou que não seria muito ético passar o pen drive para algum amigo ou conhecido, já que a ideia era “soltá-lo ao mundo” –, e a primeira coisa que Ji fez, antes mesmo de colocar o pen drive em alguma porta USB, foi quebrar o sétimo mandamento.
Após o tsunami que arrasou o Japão em março deste ano, Jia Ji mudou o foco dos seus esforços da indústria de games para projetos de caridade, como o couchange.org. Tendo em mãos algo tão desejado e “hypeado” quanto o pen drive que continha o jogo que todo mundo estava querendo jogar, ele não viu problema em transformar a coisa toda em um esquema de arrecadação de fundos.
Colocou no ar o site www.chainworld.org e bolou um esquema em que passaria o jogo alternadamente entre celebridades, como Will Wright (criador do The Sims) e anônimos que ganhassem leilões de caridade no eBay. Em vez de aceitar a regra de que ele deveria solenemente repassar o jogo para “alguém que expressasse interesse”, o chinês rapidamente introduziu o primeiro dilema ético da história dessa religião com menos de um dia de idade.
Por um lado, o dinheiro arrecadado estava indo para uma boa causa. Mas por outro, Jia Jisimplesmente estuprou a ideia inicial do jogo, que deveria ser um mundo secreto e místico, passado de mão em mão praticamente às escuras, carregando consigo uma mitologia e uma história envolta em mistério e curiosidade. Por pouco o plano de Jia não deu errado: o leilão para o próximo jogador do Chain World praticamente não atraiu atenção e estava recebendo pouquíssimos lances... até que um game designer completamente contrário à ideia resolveu vociferar a sua indignação por toda a internet.
Logo, a revolta contra a atitude de Jia se espalhou – um dos comentários no blog sugere que o tsunami deveria ter levado Jia, para que ele não fizesse isso com uma bela obra de arte digital – e eventualmente atraiu a atenção de gente com mais grana para “investir” em oportunidades de marketing como esta. Tudo isso ocorreu entre março e abril deste ano. O que se sabe sobre o jogo atualmente? Nada.
O mistério dos deuses
O leilão foi arrematado por uma entidade anônima chamada Super Ko, mas Jia enviou à revista de tecnologia Wired vídeos que o mostram atirando o pen drive na boca de um vulcão ativo no Havaí. O próprio Jason Rohrer declarou, via Twitter, que não acha que o vencedor do leilão deva seguir as regras de Jia (que dizem que o vencedor deve enviar o pen drive para uma celebridade após morrer no jogo), mas sim que deve “restaurar a ordem”, passando para alguém anônimo.
O Lúcifer chinês em seu momento de Frodo, supostamente jogando a pen drive com o jogo em um vulcão ativo no Havaí
Seja lá o que tenha acontecido, o paradeiro do Chain World atualmente é uma incógnita. Depois de demonstrar as antes inexploradas similaridades entre games, religião e arte, o jogo pareceu pedir apenas o básico quando se fala em qualquer religião: um pouco de fé.
publicado em 06 de Agosto de 2011, 05:03