Free hugs (ou "por que abraçar gente desconhecida, exceto mendigos")

— Leva uma Nossa Senhora, “dotô”. Por cinco reais, o “sinhô” fica com a imagem e uma cruzinha – diz a ambulante na escadaria da catedral, inclinando a cabeça e levantando a sobrancelha alva, em gestos suplicantes. De sua mão trincada pela idade saltam imagens de santos diversos; dependuram-se dos dedos calejados pequenos crucifixos. O dia na Praça da Sé se faz cedo e antes.

O dia nasce antes na Praça da Sé (Foto de Daniela Ortega)

Às 8h51 de um sábado frio, já havia vestígios de vida naquele lugar: vendedores, engraxates, corpos maltrapilhos, curiosos, turistas. Atrás da catedral, um corpo mutilado mendiga com a mão estendida, sem rogar palavra alguma. Na praça defronte à bela construção, por outro lado, as vozes são muitas. Os sotaques se confundem ali naquele lugar, símbolo do centro velho, reduto de nortistas e imigrantes latinoamericanos que buscam na cidade de pedra uma redenção do acre de sua terra natal, sem imaginar que o agreste pode ser aqui, em São Paulo. Enquanto um jovem venezuelano logra meia dúzia de passantes com uma bolinha vermelha que some de um copo para aparecer em outro, quatro homens jogam cartas por sobre o mármore do marco zero, monumento que indica todas as rodovias que partem de São Paulo. Entretidos no carteado, eles não percebem que, dali, podem seguir para qualquer lugar do Brasil, e se deixam estar perdidos no mundo. Eles não são os únicos ali.

Distribuídos entre os cento e setenta e dois passos que separam a estátua do Padre José de Anchieta da Catedral Metropolitana da Sé estão homens-placa, que empunham dizeres como “Compra-se ouro” e “Atestado de saúde”. Há doze deles espalhados no perímetro, e parecem todos iguais: estatura mediana, cabeça raspada, bigode parco. São todos mulatos, evidência de que o mercado de subempregos tem seus eleitos.

***

Passava das nove horas quando, em meio às placas de ouro e atestado médico, estrategicamente posicionados em frente ao posto móvel da Polícia Militar, surgem três cartazes brancos, de feitura artesanal. Em caneta esferográfica azul, trazem as inscrições “Free hugs” de um lado e “Abraços grátis” no verso. Letras de forma, todas em caixa alta. Sob um dos painéis de cartolina, Solange está paramentada do constante sorriso acolhedor e de esdrúxulos óculos amarelos. Busca chamar a atenção.

Acompanhada da irmã e do marigo, Solange se mexe na praça como uma menina num parque. Buliçosa, ela gesticula, levanta os braços, saltita. Zanza de um lado a outro, sempre posando um riso convidativo. Seu 1,65 metro e sua disposição escondem seus 41 anos. É uma mulher feliz, apesar do contato diário com a pobreza da zona leste.

Solange é florista autônoma e sabe que nem tudo são flores nesta vida. Por isso veio cedo à Praça da Sé oferecer abraços à gente estranha. Olhos curiosos miram a mulher, como o do senhor com calças maiores que as pernas e camiseta laranja berrante que, arrastando o chinelo de dedo, vai e volta, para e observa, sem saber ainda o que todo aquele furdúncio significa. Solange atrai outros olhares – uns mais ébrios, como o do senhor de laranja; outros menos, como o de Cícero Júlio.

A camisa do Vasco dissimula a naturalidade alagoana de Cícero. Aos 42 anos, o ajudante de caminhoneiro corta os 20 quilômetros que separam a Praça da Sé de Diadema em busca de distração. Naquele dia, espantou-se ao ver Solange, o marido e a irmã com óculos coloridos e as cartolinas em riste. Cruza os braços pardos e leva a mão ao queixo de barba rala, sem saber ao certo o que fazem aqueles três sujeitos fantasiados a ofertar abraços. A curiosidade nos olhos diminutos é nítida e, por nove minutos, o homem pondera se se aproxima do trio ou se fica ali, parado na banca-barbearia de um colega. Acaba indo. Deixa-se abraçar. Justifica-se num cochicho a Solange:

“Eu te vi abraçando e me lembrei de minha esposa e dos meus filhos.”

Volta com um sorriso novo e redondo no rosto, e a cabeça nos filhos Adriano, André e Daiana, e na esposa Ednilza.

O transe é desfeito aos gritos. Alguns metros distante de Cícero, um bêbado, sem parar de andar um instante, berra à irmã de Solange.

— Você pensa que é salvadora da pátria? Salvadora é o caralho. Tá me tirando de trouxa? Hein, tá me tirando de trouxa? – diz um homem enquanto arregaça as mangas do moletom cinza para que seus gestos tenham mais espaço. Levanta uma mão aos céus e leva a outra à cabeça, como quem não crê na gratuidade do gesto de Solange. Continua a caminhar passos trôpegos, e os gritos vão fenecendo. Esvai-se o som por completo, enfim. Afastado do grupo, o homem ainda olha, pasmo.

Quem assiste a tudo gargalha do bêbado, assim como riem Solange e sua irmã. Apoiado o queixo no cabo imóvel da vassoura de piaçaba, um gari sussurra ao colega:

“Se fosse sexo grátis, eu tava ‘envorvido’.”

O companheiro acha graça e ri seus dentes falhados. Ficam sem abraço e sem sexo.

Nem todos acreditam que os abraços sejam, de fato, gratuitos. Foi assim, por exemplo, com o australiano Juan Mann, inspirador do movimento internacional “Free hugs”.

Juan Mann, o homem que idealizou o Free hugs

Juan desembarcou em Sidnei no começo de julho de 2004. Voltava de Londres, “quando meu mundo estava de cabeça para baixo”. Ao chegar à capital australiana, terra natal, tinha apenas uma mala com roupas – ninguém o esperava no aeroporto. Enquanto outros passageiros encontravam rostos conhecidos e cumprimentos calorosos, Juan tinha como companhia apenas a vontade de sentir aquele calor humano: precisava de gente. Em posse de papel cartão e um marcador, escreveu “Free hugs” em ambos os lados e foi a uma das ruas mais movimentadas da cidade, a Pitt Street. Demorou quinze minutos para Juan ganhar o primeiro abraço.

O gesto do rapaz foi seguido por outros homens e mulheres, de diferentes crenças, mas com a certeza de que abraçar não poderia trazer o mal. Parecia consenso, exceto para a guarda civil, depois a polícia e, então, as autoridades locais, que impuseram barreiras – como um seguro estipulado em vinte e cinco milhões de dólares que deveria ser previamente pago para o caso de alguém sofrer danos com aquela ação. A intenção era banir o embrião do que hoje é um movimento internacional. Juan conseguiu 10 mil assinaturas em petição a favor do “Free hugs”, o que desarmou as autoridades.

Ainda hoje, há cisma de que o movimento não tem legitimidade e seja deletério. Esta sensação torna-se maior a cada novo abraço dado. Foram mais de cinquenta até o meio-dia, e em todos Solange esboça suspiros de dever cumprido.

Cumprido? Mendigos não foram abraçados. Bêbados, quase nunca.

O gesto de afeto direciona-se exclusivamente aos semelhantes: trabalhadores, transeuntes em situação financeira mais ou menos confortável, estudantes bem apanhados. Aquele cambaleante senhor de camiseta laranja de gola esgarçada, calça moletom furada e chinelo cerca Solange, anda de lá para cá, olha e torna a olhar. Destoa da paisagem com a cor de suas vestes. Solange o ignora, mas não pode evitá-lo. O senhor de laranja apenas observa o aglomerar de gente que se abraça e se alinha para a foto, desejoso de fazer parte daquela imagem. Por desleixo do fotógrafo, acaba saindo no retrato, porém afastado do grupo da qual não faz parte.

O sentimento de pertença é algo raro em São Paulo, a cidade da megalomania. Quem constrói essa riqueza são seus 11 milhões de habitantes espalhados pelos 1,5 mil quilômetros quadrados – mais de 7 mil por quilômetro quadrado. Tanto espaço e tanta gente para que, no final das contas, eu não saiba o nome do meu vizinho de andar, do meu colega de trabalho, do chapeiro que toda manhã faz meu misto-quente. A facilidade de locomoção e de comunicação da nossa época é a janela aberta para que fiquemos parados e calados sem culpa – viveríamos em coletividade, se quiséssemos. Mas não queremos.

A miríade de gente que circula na Praça da Sé contrasta com os homens, mulheres e crianças que conversam só. Sujeitos que falam ao nada, pensam alto, gesticulam, esbravejam, xingam. Dialogam sabe-se lá com quem. Quiçá consigo mesmos, fazendo as vezes de ambos os interlocutores, já que ninguém lhes dirige a palavra.

Mendigos não ganham abraços

A tecnologia amplia o hábito de falar sozinho. Um bêbado de olhos caídos, camisa maior que o mirrado corpo e calça branca, marrom de sujeira, bambeia até encontrar o telefone público. Reverbera sua embriaguez no bocal do aparelho. Em seu desvario etílico, gargalha de uma piada que não houve para, então, cessar o riso e terminar o “diálogo” com uma assertiva:

“São Paulo é feia.”

O homem é Seu Joaquim, dito contabilista. Veio de Rondônia para conhecer a megalópole, e não sabe quanto tempo fica. Também não sabe se volta. Nada sabe Seu Joaquim, que viajou mais de 3 mil quilômetros para, enfim, se perder em São Paulo. E não ganhar abraço de viva alma.

Também se sente sozinho o estudante Leandro. Aos 18 anos, o paulistano acaba de entrar na faculdade de Turismo. Faz trabalho em grupo na Praça da Sé naquela manhã e, apesar de “em grupo” significar mais de um, ele está sozinho naquela parte da praça, enquanto suas duas colegas papeiam com um grupo de rapazes ao largo. Prancheta nas mãos, Leandro sai em busca de saber a opinião dos transeuntes a respeito da Sé, da catedral, da praça, do ponto turístico, da vizinhança. Repete as perguntas sempre com um meio tom a menos na voz. A timidez se apresenta na voz baixa, nos olhos que buscam o chão durante o papo, nos gestos comedidos.

Quando se aproxima de Solange para mais bateria de perguntas, é surpreendido por um abraço. Deixa-se abraçar, e os dois tapinhas nas costas de Solange indicam que Leandro não é muito íntimo de demonstrações públicas de afeto. Principalmente entre desconhecidos. Quando as colegas se aproximam, ele ainda está ruborizado.

— Você foi lá pedir abraço?

— Ah, eu fui falar com a moça e ela me abraçou.

— E você deixou?

— Eu deixei, ué! Quem faz esse tipo de coisa não tem maldade no coração.

— Cê ia abraçar gente estranha se fosse lá perto da sua casa, na Zona Leste?

— Lá eu conheço todo mundo. Mas se não conhecesse, não abraçava, não. Tem muita maldade no mundo...

***

A simples presença do senhor de laranja começou a intrigar os abraçadores. Solange e os outros dois posicionaram-se em frente ao posto móvel da Polícia Militar justamente para evitar qualquer problema. Afinal, “a Praça da Sé é um lugar pouco seguro, com um pessoal esquisito”. O maltrapilho de camiseta berrante não chega a ser uma ameaça – mais um estorvo. Um estorvo com olhos rogativos. Sem ter como lidar com aquele mirrado corpo que circunda o trio, quase a implorar que lhe deem atenção, Solange se aproxima. De braços abertos, curva o tronco para não sentir o corpo alheio durante o contato. Abraça o senhor de roupa de cor excêntrica.

— Você é gente fina – retribui o homem, que em momento algum estende os braços a Solange. Visivelmente emocionado com o gesto da mulher, afirma que ela “é do coração”.

Enquanto afasta sua pequenina figura, permite que o olhar fique perdido em Solange. Apenas se dispersa quando o amigo de barba crespa e voz grossa, que todo o tempo estava na praça, berra “cadê o litro?”, impacientado com a demora do companheiro de gargalo, e os dois saem à caça de cachaça.

Já era mais de meio-dia quando Solange, o marido e a irmã abaixaram seus cartazes. Sem alarde, deixam a Praça da Sé. Agradecem aos soldados da Polícia Militar por estarem ali, mesmo que não tivesse sido necessário acioná-los.

As manhãs de sábado reservam à Praça da Sé uma média de 20 queixas ao posto móvel da Polícia Militar. A maioria dos casos reportados diz respeito a furto de aparelho celular. Naquela manhã, porém, não houve sequer um relato.


publicado em 23 de Fevereiro de 2012, 23:10
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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