Filosofia de mesa de bar | WTF #65

A polêmica ao estilo “direita e esquerda” em filosofia guarda uma semelhança (meramente estrutural) com as duas escolas informais, “filosofia analítica” e “filosofia continental”.

A filosofia analítica é particularmente coisa de anglófilos – preza a linguagem clara, algumas vezes ao ponto de tentar evitar jargão (na vertente extrema “filosofia da linguagem cotidiana”), e imita artigos de ciências duras, com uma tese a ser provada por meio de um argumento sequencial e direto.

Em contraposição, e aqui vou tentar escrever da forma mais neutra – porque, no final das contas, parece que esses rótulos, “continental e analítico”, são simplesmente um jeito dos analíticos escantearem os franceses ou algo assim – a forma continental preza o aspecto literário, a riqueza semântica, e a hermenêutica como método filosófico.

Tudo isso são estereótipos. Alguns filósofos analíticos se dizem analíticos, querendo com isso dizer que são bons filósofos não charlatões. Estão apenas ali no canto deles, humildemente trabalhando (filósofo tem sempre que prestar justificativas à sociedade), produzindo (muitas vezes na base do salame) seus artigos relativamente despretensiosos (alguns diriam insossos) na tentativa de incrementar o conhecimento a passos de formiga. Nem sempre foi assim: essa pequeneza vem da derrocada amarga do grande projeto de viés positivista-lógico, com a colaboração de filósofos e matemáticos como Hilbert, Gödel, Wittgenstein e o próprio Russell. Já que não é possível formalizar nem mesmo a mais reles aritmética pela mera lógica, que dizer qualquer coisa um pouco mais complexa, ou a própria vã filosofia?

Wittgenstein usou a expressão “castelos de cartas”: aquele trabalho imenso no Principia destruído por umas notas de rodapé de Russell.

Claro, cem anos não é tempo para digerir essa não conquista – que, como tudo em filosofia, acaba sendo reconhecida como uma grande conquista. O fim de um problema, seja de que forma, é uma espécie de bomba atômica filosófica. É impressionante, ainda que destrua décadas, talvez séculos, de trabalho.

E, no fim das contas, os lógicos matemáticos é que estão certos: o que a filosofia ganhou com toda aquela lógica formal? Uma visão clara dos limites da linguagem, e da própria filosofia? Enquanto Wittgenstein usufruía de seu gênio torturado com seus adoradores e namoradinhos, assoviando filosofia em aula em Cambridge, Turing vencia a 2ª Guerra e era maltratado pela própria pátria. O resultado do trabalho com lógica foi eminentemente prático: o computador. Impactinho bem pequenino esse, sô. Mas, em termos da filosofia, só causou impacto para um grupo de nerds apolíticos e amorfos, sem consequência sequer para a própria filosofia, que dirá para a sociedade. E falo isso como admirador do trabalho de Wittgenstein. Talvez em 200 ou 300 anos, quando começarem a entender as Investigações Filosóficas, as coisas mudem.

E, por outro lado, os continentais algumas vezes não podem escapar de, enfim, trabalharem no continente, numa língua estilizada, e não no bastardo inglês comercial. Também sem dúvida escrevem algo que, se você dedicar o tempo necessário para entender, ou até para entender o simples fato de porque enfim você está lendo aquela joça, naturalmente vai ter que virar fã: admitir a irrelevância ou pobreza de tudo aquilo seria como dizer que você perdeu 10 ou 20 anos da vida. A dificuldade, cinicamente vista como artificial e charlatã pelo analítico, independente disso, por si só, já implica o grau de comprometimento.

Porém o aspecto literário, lúdico, publicitário é o que no fim cativou o século passado. Os filósofos-celebridade, aqueles que acabam discutindo atualidades em vídeos de YouTube ou num documentário sobre cinema analisado em termos “stalin-lacanistas”, esses são “a filosofia viva” da selfie-reflexão. E que são eles senão o pastiche dos pós-modernos, que foram o pastiche dos pós-estruturalistas? Essa mistura de engajamento político, showmanship, parrésia (algumas vezes mera chutzpah qua chutzpah), lowbrow meets hibrow, é irresistível para uma plateia com a capacidade de atenção de uma mosca.

Ainda assim, pelo menos estão em diálogo com alguém, e não apenas presos em algum tipo de RPG matemático perdido, como alguns analíticos.

Não é preciso dizer que, em se tratando de generalizações e estereótipos, há misturas, virtudes e vícios, por todos os lados. (Já me defendo dizendo que filosofia é algo que me atrai como fenômeno cultural: eu não acredito na coisa toda, no projeto. Acho interessante como fenômeno sociológico, como porque em algum momento se dançava minueto e depois se gosta de ópera ou futebol.)

O suposto filósofo continental, digamos alguém como Derrida, acaba produzindo tanta teoria que em alguma pontinha ele acaba dedicando um tempo para se garantir entre os analíticos. E, convenhamos, difference de argelino é refresco no dos outros. O analítico sempre precisará conceder “não é que ele não entenda nosso método de filosofia, ele apenas deliberadamente não seguiu por ele, e isso está justo”. Quando eles não estão sendo enfants terribles, eles têm perfeita capacidade articulativa para falar do que for. Os melhores, claro. E olhe que eu abomino o trabalho de Derrida. (Talvez seja meu filósofo continental favorito.)

Além de tudo, a racionalidade perdeu mesmo muito de seu elã com a precisão mecânica dos campos de extermínio – mas qualquer filósofo que a galerinha do mal curtia foi, sem dúvida, mal interpretado. Com a filosofia, funciona assim: se é bom, foi a filosofia, se é ruim, não é culpa dela – entenderam mal, se apropriaram.

Como qualquer programador sabe, engrenagem é algo cego, surdo e mudo. Se alguém fosse “desconstruir” os argumentos de linguagem privada, Zeus nos livre, ficaria seriamente encasquetado com a dor física sendo um exemplo de algo que alguém não tem como representar nem mesmo para si próprio.

Um psicólogo esotérico certa vez disse que toda a obra de Schopenhauer não passa de uma sequência infindável de gemidos.

E não é a própria direita lunática que usa a falseabilidade da ciência para negar a mudança climática com causas humanas, a teoria da evolução, a ausência de armas de destruição de massa no Iraque, a ligação do câncer com o fumo? A racionalidade se mostrou, vez após vez, mero instrumento na mão de ideólogos e publicitários. 99% dos cientistas dizem uma coisa, mas o lado oposto sempre ganha o mesmo tempo na TV num debate no telejornal à noite – afinal de contas somos seres “racionais”, temos que sempre estar abertos a opinião do outro: particularmente quando ela vem com o apoio infindável de lobistas e dos patrocinadores.

Se você acha que argumentos lógicos servem de alguma coisa, você não está com isso fazendo argumento nenhum. Isso também é ideológico. Falocêntrico, até. Às vezes precisa convidar tod@s as amigues e fazer um bafão, lógica não rola.

Essa galera das duras, vou te dizer.

Se você sentar numa mesa com calouros e tomar mais que três cervejas, você vai acabar dizendo que Parmênides era analítico, e Heráclito dionisíaco, burp, digo, continental. Ou vai sacar seu Principia do bolso e dizer que filosofia analítica é coisa de Greyface.

Entendo perfeitamente.

(Opa. O outro Principia, claro. Não, também não o do Newton.)

Nota do editor: todas as imagens, 


publicado em 09 de Julho de 2015, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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