Fazendo miojo com água do chuveiro & outras histórias bem pessoais sobre morar sozinho

Nos meus textos anteriores sobre morar sozinho, tentei dar algumas dicas para facilitar essa por vezes difícil fase transição da vida de um homem. Digo "difícil" porque, bem, pra mim foi bastante.

Aqui no PapodeHomem, a caixa de comentários é uma ampliação do horizonte, revelando pontos sobre o texto que nem o autor considerou. No meu caso, os comentários evidenciaram que não esclareci de onde surgiram aqueles conselhos, de quais experiências elas saíram.

O percurso que me levou a morar sozinho e assumir as rédeas da minha própria vida não foi tranquilo. Nenhum dos eventos que vou relatar a seguir me dão orgulho. Mas foram importantes e, com o tempo, aprendi a contá-los de uma forma até descontraída.

Peço desculpas aos amigos e parentes que lerão isso, já que são coisas que contei a pouquíssimas pessoas.

Não sei por que esse cara está triste. O apartamento dele é grande, bem acabado, tem cozinha americana, luz spot, e ele tem grana para cerveja. Não tive nada disso

Quando eu menos esperava

Há alguns anos, quando ainda não morava sozinho, recebi uma das ligações mais importantes da minha vida. Era o meu irmão. Contando que a nossa mãe havia sido internada. Acidente Vascular Cerebral.

Quando meu irmão desligou o telefone, foi como se tivessem apagado 23 anos da minha vida. Nada nunca voltou a ser nem parecido com o que era antes.

Depois de muitos problemas, conseguimos uma UTI para ela, e tudo parecia que ia se resolver. Mas não. Minha mãe acabou perdendo a capacidade de fala e os movimentos de todo o lado direito do corpo.

A nossa primeira grande ilusão, tão primordial que acabamos tendo como verdade por mais que nos lembrem do contrário, é a de que nossos pais estarão sempre lá, prontos para nos ajudar quando precisarmos, ou que vai demorar muito para eles nos deixarem. Mas uma ilusão se dissipa.

Depois da alta, minha mãe saiu do hospital e foi morar sob os cuidados do meu avô, o guerreiro que cuida dela até hoje. E foi assim que eu, que até então morava com ela, precisei arrumar um lugar para mim.

O primeiro ano

Passei um bom tempo me dividindo entre o sofá de um grande amigo e a casa da namorada, onde dormia por alguns dias. Quando os pais dela começavam a se incomodar, eu voltava para casa do meu parceiro, dava um tempo e voltava.

Ao final de um ano bem complicado, sem instalações fixas ou luxos, andando sempre com umas roupas na mochila e deixando o que podia na casa da namorada, tomei coragem resolvi alugar um lugar. Mesmo sem ter renda o suficiente para sustentá-lo.

O apartamento era perfeitamente localizado, pelo menos. Eu chegaria no trabalho antes do miojo ficar pronto, se colocasse no fogo na hora que saísse de casa. Meu objetivo era não precisar gastar dinheiro com transporte, nunca, para nada. Qualquer "doirreal" de ônibus me faziam diferença.

A quitinete que aluguei estava vazia. Só tinha um guarda-roupa embutido que nunca consegui preencher direito. Deixei muita coisa pra trás. Não dava para viver o ano que eu vivi mantendo as coisas que eu tinha.

Consegui um colchão inflável onde dormi por um certo tempo, até ganhar uma cama de presente. Eu tinha comprado um notebook pouco antes de tudo acontecer. A cena que se repetiu por um bom tempo, como você pode imaginar, é a seguinte: eu sentado com um notebook sem internet em um colchão inflável dentro de uma sala de 23 m².

Pouco depois ainda fiquei solteiro, só para dificultar as coisas.

Na porta do guarda-roupa, colei vários post-its com itens que eu precisava para viver um pouco melhor. Eram meus sonhos e planos, coloridos e retangulares, com cola fraca.

Dinheiro não compra felicidade, mas faz uma falta do caralho

Nesse ponto, o aluguel mais barato da cidade matava mais da metade da minha renda. Sobrava pouquíssimo dinheiro para todo o resto. Comer, comprar produtos de limpeza, higiene e quem sabe, uma camisa menos surrada para poder ir trabalhar. Cada uma dessas necessidades era pensada em uma programação de prioridade que, se feita de forma errada, poderia comprometer o mês inteiro.

Eu não tinha fogão, geladeira ou microondas. Não tinha um bom salário e meu nome estava sujo (por causa de contas que nem eram minhas). Sem dinheiro e sem crédito. A compra de um fogão ou geladeira me parecia algo tecnicamente impossível.

Só rolava de comprar comidas que não estragam. Comidas que não estragam são caras e rendem pouco.

Testei o limite de quase todos os alimentos. Um queijo muçarela consegue ficar até 4 dias fora da geladeira antes de embolorar. Quando estiver mofado, é só cortar o pedaço verde fora e aproveitar o resto. Isso serviu de base para meu primeiro conceito pessoal de sobrevivência: a comida só estraga quando está verde. Prazo de validade é meramente ilustrativo.

Uma das saídas que melhor funcionava na tentativa de conseguir comer sem gastar dinheiro era chamar um amigo para comer pizza em casa. Sabe aquela pizzaria que você compra uma e ganha outra na terça-feira? Eu combinava com meu amigo, ele passava e buscava as pizzas no caminho. Comíamos uma, e a outra, ou o que sobrava dela, virava meu jantar pelos próximos quatro dias. Quando rolava isso era quase um evento. Saía do trabalho ansioso, louco para comer aquela pizza de pepperoni que estava há três dias dormindo fora de uma geladeira.

O meu momento mais eureka foi quando aprendi a fazer Cup Noodles com água quente do chuveiro. Depois consegui reproduzir o experimento com miojo num tupperware. É fácil: só abrir o chuveiro bem pouquinho, deixando a água bem quente, e encher o potinho, tampar e esperar uns 5 minutos.

Já fez comida com isso?

Outra descoberta: um pacote de biscoito recheado custa, ou custava na época, R$1,36. Dá para passar com metade no almoço e metade na janta. Já passei semanas comendo só Negresco e bebendo água da torneira.

A propósito, água gelada é um luxo do caralho.

Cheguei a ficar alguns períodos sem ter o que comer. O orgulho me segurava de contar isso para qualquer pessoa, pedir alguma ajuda. Minha família, até o momento em que algum deles ler este texto, nunca soube.

Certo dia, um amigão meu descobriu que eu não comia fazia uns quatro dias. Saiu da casa dele às 10 da noite, me buscou, levou para comer, brigou comigo por ser cabeça dura e me deu 50 reais.

Cinquentinha dava pra comprar Negresco para mais de um mês, e rolou até uma garrafa de água gelada no mercado.

Aquele vazio nem sempre é fome

À medida que as coisas ficavam mais críticas, eu me afastava de quase todo mundo. Não queria contar para as pessoas o que estava acontecendo e também não conseguia mais sair com o pessoal. Tudo gastava dinheiro, tudo era muito mais caro do que eu podia pensar em pagar.

No meio dessa bagunça, é obvio que eu já não tinha mais dinheiro para treinar, então também me afastei dos amigos de treino. Nessa época, até Parkour, que é de graça, não rolava. Quando resolvia treinar, acabava com tanta fome que me arrependia profundamente.

Eu preferia que as pessoas pensassem que estava sumido ou ocupado do que tivessem pena de mim. Não sou o tipo de homem que nasceu para as pessoas terem pena. Eu não.

Fiquei muito, muito tempo sentado, olhando para aquelas paredes. Não havia nada que eu odiasse mais do que feriados prolongados. Trabalhar fazia minha mente se ocupar. No trabalho tem café de graça, que ajuda a disfarçar a fome, e tem pessoas para conversar. Ficar em casa significava tentar ler algum livro, ouvir música ou ficar pensando enquanto olhava paro o teto.

No começo eu gostava muito de pensar, mas quase fiquei maluco

No começo você fica triste porque se sente sozinho e é comum chorar. Mas entende que ninguém está vendo, que nada daquilo vai mudar muita coisa e nessas você vai acabar parando de chorar concretamente. As lágrimas acabam se transformando num choro interno, algo bem mais abstrato e sutil do que o choro representa culturalmente.

Você não precisa demonstrar para ninguém que está triste. Não tem ninguém ali.

Tudo sempre pode piorar muito: fiquei doente

As coisas não acontecem quando queremos, e obviamente eu ia ficar doente. Adoecer naquela época foi das experiências mais fortes que tive. Foi algo transcendental, responsável por drásticas mudanças na minha percepção quanto ao mundo.

Comecei a me sentir molenga perto do meio dia. Cheguei em casa por volta das 18 horas, meus olhos estavam bem quentes e ardiam muito. Tomei uma série de banhos frios para tentar baixar a possível febre que, aparentemente, não resolveu. Comecei a suar frio e sentia tremedeiras bem fortes. Quando me cobria, o calor era insuportável, mas sem o cobertor, meus ossos doíam de tanto tremer. Os calafrios eram assustadores.

Não conseguia pensar em ninguém para ligar e pedir ajuda. Não pensei em nada que poderia ser feito. Não dava para comprar remédio ou pegar um táxi para ir ao hospital. Muito menos tinha forças para andar até uma parada de ônibus. Eu estava ali, esperando alguma coisa acontecer.

Nesse momento, senti falta das pessoas, de ter alguém comigo.

Eu que sempre pensei que não precisava de ajuda, que poderia me virar sozinho. Eu que nunca tinha pensado em casar ou ter filhos. Naquele ponto da vida, ou da quase morte, só queria alguém que pudesse me abraçar e falar palavras legais. A aflição que eu tinha era muito mais de não ter ninguém comigo do que estar passando dessa para melhor. E sim, eu realmente achava que estava morrendo.

No filme “Na natureza selvagem”, quando Christopher McCandless estava à beira da morte, ele escreve em um livro a frase que até hoje uso como subtítulo do meu blog de treino:

“A felicidade só é real quando compartilhada.”

Durante toda essa noite turbulenta, pensei sobre o que aconteceria depois daquilo. Eu iria morrer e não deixei uma esposa para sentir saudades de mim ou um filho para crescer e seguir com o que construí -- até porque não havia construído nada. Pensei no meu corpo apodrecendo naquele apartamento. Demoraria uns dias até começar a feder e os vizinhos chamarem a polícia, que me encontraria deitado na cama, meio coberto.

Iriam atrás do proprietário do imóvel, que guiaria até a imobiliária. Lá encontrariam os dados de referência que dei para alugar o apartamento. Avisariam minhas tias e meu avô.

Essa hora, já nem teria defunto direito para enterrar.

De uma forma talvez amplificada pelo medo, foi essa a conclusão que cheguei:

Link YouTube | "Happyness is only real when shared"

Sei que tudo isso é meio dramático, mas naquela época, foi exatamente o que passou pela minha cabeça. Ao longo desse pensamento, apaguei esperando a morte, enquanto abraçava o travesseiro bem forte.

Acordei no dia encharcado de suor e me sentindo bem melhor.

Quando batemos no fundo, já passou da hora de subir

Tudo o que aconteceu foi muito significativo para mim. Enxergo que cresci e amadureci muito em todo esse tempo, com todas essas sensações. Não conto nada disso com tristeza ou mágoa, acho tudo até um pouco engraçado em alguns pontos. Depois que passa, olhamos para trás e tudo chega a ser meio bobo.

Hoje vivo em uma condição muito boa, não tenho nenhum dos problemas relatados. Mas guardo o que passou como uma grande escola.

O primeiro texto que escrevi sobre morar sozinho usa o tema como um símbolo, uma analogia à independência e emancipação pessoal. Todos os pontos sugeridos por ele não vão fazer você morar sozinho de uma forma melhor, mas vão transformar toda sua emancipação como homem, muito mais fáceis.

Todos aqueles pontos foram elementos que me ajudaram a sair daquela pequena sala e me alavancaram para a vida, que arrisco dizer que muito boa, que vivo hoje. Tudo aquilo é uma compilação de tudo que a vida me ensinou naquele ponto específico dela.

* * *

Depois de acompanhar essas histórias, quero convidar você a ler de novo os meus textos dois textos anteriores sobre o assunto, dessa vez entendendo o contexto por trás daquelas falas.


publicado em 12 de Setembro de 2012, 07:31
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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