False Flag: como justificar o injustificável | Tecla SAP #10

Precisamos nos unir contra um inimigo que criaram por nós e pra nós!

Vamos supor, su-por, que você odeie comunistas.

Você acredita que eles são um mal pra sociedade, argumenta que as coisas que eles defendem não deram certo em nenhum lugar do mundo e até indica casos em que eles abusaram do autoritarismo. Pra resumir, você acha que, se for preciso, eles realmente são capazes de comer criancinhas.

Mas você está ali, convivendo com isso, travando um diálogo ideológico minimamente civilizado, até que um acontecimento excepcional ocorre. Imagine algo bem impactante do tipo: um incêndio no congresso nacional.

Imediatamente, uma investigação interna é conduzida, comprova que os caras de vermelho são mesmo os responsáveis e um parlamentar aparece sugerindo um lei que criminalize o comunismo. A partir de agora, eles não poderão mais defender tais ideias sob risco de serem mortos, presos ou expulsos do país. Você, fica meio em dúvida no começo. Isso te parece meio radical. Mas muita gente apoia e você também não se opõem, afinal, foram eles mesmos que começaram tudo isso, não é mesmo?

Possível

Pois foi exatamente o que aconteceu em 1933. Na Alemanha. Nazista. De Hitler. Mas também em diversos outros lugares do mundo ao longo da história. Com algumas variações de causas e inimigos. Mas sempre com uma peculiaridade: os ataque que serviam de estopim para uma reação foram forjados. Ou pelo menos levantam muitas suspeitas.

Na ocasião citada, o partido nazista forjou um incêndio ao Reichstag, o prédio do parlamento alemão, e uma investigação culpou o ativista comunista Marinus van der Lubbe. O incidente foi a desculpa que Hitler precisava para aprovar a Lei de Concessão de Plenos Poderes que transformou a Alemanha num regime de exceção e Hitler num ditador que mais a frente ia fazer você sabe o que.

Tudo começou, a muito tempo atrás, no Incêndio ao Reichstag

Absurdo, né? Mas não foi a primeira vez que isso aconteceu. E nem a última.

Dois anos antes, em 1931, o exército japonês explodiu uma ferrovia e acusou dissidentes chineses de o terem feito. Assim, o governo teve o pretexto que precisava para começar uma guerra que acabaria anexando o território envolvido em disputa, a Manchúria, no que ficou conhecido como o Incidente de Mukden. A sabotagem proposital, porém, acabou sendo descoberta e dando origem oficial ao termo False Flag.

Afirmativo

O termo remete à época das batalhas marítimas entre grandes frotas navais. Como se sabe, todo navio ou avião carrega consigo a bandeira do país de origem (ainda que simbólica), cientes disso, era comum que, para insuflar o exército, uma embarcação da própria esquadra hasteasse uma bandeira rival e fizesse um ataque surpresa a um navio amigo.

Acreditando na veracidade do ataque – muitas vezes 'mal-sucedido' para não gerar baixas –, os soldados enraivescidos acatavam até as ordens mais radicais de seus superiores. A questão se tornou tão séria que hoje, um código de guerra internacional, proíbe esse tipo de ataque.

Começando pelo começo.

Com o passar dos anos, a terminologia foi atualizada e passou a ser usada em outros contextos que não o militar, ainda que sempre para descrever uma ação forjada de um governo contra o povo de seu próprio país. Tratava-se de uma expressão comum no vocabulário de agências de investigação internacional, embaixadas, pessoas envolvidas com conflitos internacionais e política externa, acostumadas a lidar com invasões ou ataques terroristas.

Acontece que, nem sempre se tratam de grandes eventos como os mencionados até aqui. Os ataques de bandeira-falsa passaram a ser usados oportunamente pela estratégia de campanha de candidatos ou mesmo pela comunicação oficial de governantes para justificar uma medida, digamos, acima do tom. E é aí que mora o perigo.

Amenizada, travestida, ela anda camuflada entre nós o tempo inteiro. Sem que nos demos conta.

Alternativo

Aplicada ao nosso contexto atual, o False Flag se aproveita de ocasiões dúbias para criar um sentimento polarizado de 'nós contra eles'. O que, como já sabemos, é bastante perigoso.

Mas, com tanta informação disponível, tantas fontes para checar, você pode estar achando difícil encontrar um contexto onde isso se torne possível. Certo?

Pelo contrário, é justamente o grande número de versões de um mesmo fato – ou, se preferir, os fatos alternativos – que causam a grande confusão. Sem saber ao certo em quem confiar, confiamos em quem julgamos mais confiável. E quem tem uma perspectiva diametralmente oposta à nossa, faz o mesmo. E as bolhas vão sendo criadas. Sucessivamente. Se tornando cada vez mais difíceis de serem furadas.

Quando elas finalmente estão consistentes o suficiente, pronto, basta um deslize qualquer para que a guerra esteja declarada. A modernidade acaba de criar uma nova categoria de False Flag. Uma que atua no campo discurso. Não é mais nem preciso que algo de fato ocorra, apenas que se diga que ocorreu.

O futuro já começou.

No fim das contas, comunistas, muçulmanos, petralhas, coxinhas, imigrantes, nordestinos, eu, não importa. Quem quer que seja quem você odeie, de quem quer que seja que você tem medo, é preciso investigar nossos reais motivos e se perguntar: o que você ganha nutrindo esse ódio todo? E o que os outros ganham com isso? Afinal de contas, o seu inimigo pode ter sido criado especialmente pra você.

“O terrorismo é a melhor arma política para se usar nas pessoas, e colocá-las nada mais do que com medo de morte súbita.”

Adolph Hitler – líder da Alemanha Nazista

 “Naturalmente, as pessoas não querem guerras. Nem na Rússia, nem na Inglaterra ou nos EUA e nem mesmo na Alemanha. Mas são os líderes do país que determinam a política e é sempre uma simples questão de arrastar o povo junto, seja em uma democracia, numa ditadura fascista, num parlamento ou numa ditadura comunista. Tudo que você tem a fazer é dizer-lhes que eles estão sendo atacados, e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo ao expor o país ao perigo. Esse método funciona da mesma maneira em qualquer país.”

Hermann Goering – outro líder da Alemanha Nazista. 

“A maneira mais fácil de ganhar o controle de uma população é através da realização de atos de terror contra ela. A população vai clamar por tais leis, e mais controle, se a sua segurança pessoal parecer ameaçada.”

Josef Stalin – líder da União Soviética

 “Se a tirania e a opressão vierem a esta terra, será sob a desculpa de uma luta contra um inimigo estrangeiro.”

James Madison – presidente dos Estados Unidos

“O México está nos enviando gente que tem muitos problemas, trazem drogas, são estupradores e suponho que alguns até podem ser boa gente, mas eu falo com agentes da fronteira e eles me contam a verdade. O México não é nosso amigo. É por isso que vou construir um muro em toda nossa fronteira sul.”

Donald Trump – presidente dos Estados Unidos

“Estou a ordenar novas medidas de verificação para manter os terroristas radicais islâmicos fora dos EUA. Eles são perigosos e nós não os queremos aqui.”

Donald Trump – presidente dos Estados Unidos

“Dilma Rousseff, Lula e o PT não entregarão o governo por uma votação na câmara e no senado. O que eles teriam que fazer pra justificar não entregar? Ato terrorista.”

Jair Bolsonaro – deputado federal

“É mais fácil atirar quando o bicho-papão está do outro lado da arma.”

Arquette – personagem de Michael Kelly em Black Mirror

***

Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.


publicado em 02 de Março de 2017, 22:13
Breno franca jpg

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura