Exame de próstata: você não precisa de um toque retal

Depois dos 45 anos, todos devemos superar nossos medos e preconceitos, nos submetendo a um exame simples, barato, sem riscos e que salva muitas vidas: o toque retal para rastreamento de câncer de próstata. Todos os que discordarem disso são machões primitivos e estão arriscando sua saúde, embasados por uma visão estreita.

Eu sei, você já leu isso (ou algo muito próximo) antes. E como é notório que por aqui não costumamos seguir a onda, você provavelmente já sacou que vamos ignorar a suposta veracidade desse conceito e quebrar tudo em busca de uma compreensão real do assunto.

"Véi, na boa, onde cê vai com esse dedo?"

O tópico surgiu nas discussões deste artigo do prodigioso Dr. Health. Devido à relevância do tema, decidimos contemplá-lo em espaço próprio.

Agora é lançar a polêmica e aguardar hordas de colegas revoltados com o dedo em riste (com trocadilho).

Médicos devotos

Os médicos constituem a corrente secular com os dogmas mais indestrutíveis, seguidos de perto pelos tradicionalistas gaúchos. E essa “pirraça intelectual” do pessoal de branco, na maioria das situações, é excelente. Somos alvo diariamente de saraivadas de trabalhos científicos muitas vezes contraditórios. (Nem é preciso entrar no mérito da idoneidade dos estudos conduzidos por gigantes da indústria farmacêutica.) Se nos deixarmos levar cegamente por qualquer nova hipótese ou evidência, sem questionar exaustivamente seus vieses e implicações, mudaremos de conduta ao alvorecer de cada milagre anunciado no Fantástico ou no Globo Repórter.

Até aí, ponto positivo pra nós. Estrelinha na testa, orgulho da tia. Mas essa resistência a mudanças tem seu lado negro, quando, mesmo depois de demonstrada a falta de evidência científica de algumas práticas, elas continuam sendo adotadas ubiquamente e sendo apregoadas como essenciais, defendidas com unhas e dentes nos congressos, reuniões científicas, corredores de hospitais e mesas de bar.

Há colegas que discutem ciência com um “rigor lógico” que às vezes remonta às táticas de guerrilha das nossas pequenas e algumas ocasiões permitem apreciar celebridades do meio médico às beiras de uma demonstração de MMA. Questionar o rastreamento do câncer de próstata, em alguns ambientes, é como dizer que o rei está nu. Para quem nunca se interessou pela vida na corte, uma breve introdução.

Promoção à saúde e prevenção de doenças

A ação do médico e de outros profissionais de saúde há muito tempo extrapolou o objetivo tão clássico quanto limitado de curar doenças. Isso é quase óbvio, uma vez que curamos muito pouco, mas demorou pra ficha cair. Felizmente, nossa motivação ampliou-se para abarcar demandas mais humildes e mais nobres, como o alívio do sofrimento. E a tal promoção à saúde.

Promover a saúde não se restringe à prevenção de doenças, mas obviamente passa por este conceito. E existem níveis de prevenção:


  • A prevenção primária, além de intervenções específicas como vacinações, versa sobre a adoção de um estilo de vida saudável, com dieta adequada, atividade física regular e eliminação de fatores de risco como o tabagismo. A ideia é impedir ou retardar o desenvolvimento das doenças. Essa é a estratégia mais barata, mais eficiente e que mais salva vidas.

  • Uma vez instalada a doença, seu diagnóstico e tratamento precoces em indivíduos sem sintomas, quando satisfeitas algumas condições, consistem em prevenção secundária. É aí que (não) figura o rastreamento do câncer de próstata e é nessas condições para o rastreamento que tal prática é questionável.

  • A prevenção terciária é um conjunto de medidas (incluindo reabilitação) para reduzir prejuízos e complicações de qualquer condição clínica.

  • Recentemente, surgiu ainda o conceito de prevenção quaternária, cujo objetivo é diminuir o risco de intervenções excessivas ou inapropriadas dos profissionais de saúde, fenômeno que tem recebido grande atenção de autores como o Dr. H. Gilbert Welch. E é neste contexto que tentarei deixar o velho Hipócrates um pouco mais esperançoso com seus discípulos hoje.

Rastreamento

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Investigar determinadas doenças em indivíduos assintomáticos parece uma boa ideia. É intuitivo considerar que, quanto mais cedo descobrirmos uma doença e começarmos a tratá-la, maior nossa chance de sucesso. Muitas vezes isso está certo. Mas as aparência podem enganar, e nossa intuição certamente não é o melhor parâmetro para a definição de políticas de saúde.

Os estudiosos Wilson e Jungner descreveram, em 1968, uma série de critérios para definir se determinada condição deveria ser contemplada com um programa de rastreamento. Resumindo e traduzindo para o saco-roxês:

1. Não perca tempo com bobagens: a condição a ser rastreada deve representar um problema relevante de saúde pública, com alta magnitude, transcendência e vulnerabilidade.

2. Conheça seu adversário: é importante que a história natural da doença esteja completamente elucidada. Intervir em algo que não conhecemos perfeitamente é ineficaz e perigoso.

3. Tenha certeza de que o adversário lhe dá tells e que você sabe lê-los: a doença deve ter um estágio inicial em que seja possível diagnosticá-la na ausência de sintomas.

4. Segure sua onda: o rastreamento só faz sentido se o tratamento precoce da doença for claramente mais benéfico que o tratamento na fase clínica (com sintomas).

5. Se não tiver a chave certa, não meta o pé na porta: só rastreamos uma doença se para isso houver exames amplamente aceitáveis, disponíveis e confiáveis.

6. Não compre um anel de diamantes pra qualquer uma, principalmente se você for um pé-rapado: os recursos destinados à saúde, mesmo em países ricos, são sempre finitos; nos países pobres ou com distribuição desigual da renda, não é necessário estender-se na descrição. Logo, a preocupação com os custos do rastreamento (e de suas consequências) é tão fundamental quanto seus aspectos técnicos, já que o cobertor curto pode deixar outras situações mais importantes sem o devido suporte.

7. Devagar e sempre: programas de rastreamento devem ser contínuos e sistemáticos; mutirões com localização, duração e público-alvo restritos não mudam nada além do resultado da eleição.

Esses critérios são, até hoje, o padrão de ouro na análise de qualquer proposta de screening. O câncer de próstata falha em preencher esses critérios, devido a vários vieses estatísticos e algumas questões operacionais.

A dedada e seus vieses

Existem tipos diferentes de câncer de próstata: variedades agressivas e rapidamente progressivas, que matam em pouco tempo, e outras mais indolentes, de crescimento lento, que demorariam tanto tempo para nos matar que acabamos morrendo de outra doença primeiro.

Link YouTube | O câncer de próstata pode matar assim, len-ta-men-te

A incidência de tumores de próstata, desconsiderando as suas variações, aumenta irrevogavelmente com o avançar da idade: se vivêssemos tempo suficiente, 100% de nós desenvolveriam algum tumor na próstata. Como grande parte dos tumores é de crescimento lento, a maioria morreria com o tumor e não do tumor, fato ilustrado pela observação de cerca de 1/4 dos homens falecidos por qualquer causa e submetidos à necrópsia apresentarem, além da causa de morte, tumores na próstata não diagnosticados. Estima-se que após os 85 anos, 3/4 dos homens tenham tumores de próstata. E sabemos que essa não é a maior causa de mortalidade nessa população.

Length-time bias, ou viés de tempo de duração

Ao instituirmos um programa de rastreamento, nos deparamos com tumores de todas as variedades e não há como diferenciá-los sem procedimentos invasivos. A ironia da coisa é que é muito mais provável que diagnostiquemos precocemente os tumores “inocentes”, deixando passar aqueles “do mal”. Esse viés é chamado de “length-time bias” (viés de tempo de duração).

Os tumores mais agressivos crescem rapidamente, dão sintomas em menos tempo, matam em menos tempo. Os tumores menos agressivos crescem devagar e o indivíduo portador da doença “dura” mais tempo na população a ser rastreada. Como o rastreamento ocorre em medidas pontuais ao longo do tempo, como “fotografias” periódicas dos indivíduos, é muito mais provável que ele incida sobre as doenças com maior duração.

Desse jeito, não ajudamos quem talvez se beneficiasse do tratamento precoce e causamos sofrimento e custos desnecessários ao pesquisar e tratar tumores que provavelmente não iriam nos incomodar se não fôssemos atrás deles.

Lead-time bias, ou viés de tempo ganho

Este imenso viés é mais evidente e fácil de entender se pensarmos no seguinte exemplo:


  • O indivíduo A participa do rastreamento regularmente e, com 50 anos, detecta um nódulo na próstata, que é biopsiado e confirma-se o diagnóstico de câncer. Após realizar todos os exames cabíveis, ele é submetido a uma cirurgia radical. Como complicação da cirurgia, fica impotente. Nos próximos dez anos, continua sendo acompanhado, apresenta recidivas (o câncer “volta”), faz radioterapia, passa por todas as complicações de tal procedimento, apresenta metástases e morre aos 60 anos.

  • O indivíduo B nunca participou do rastreamento. Aos 58 anos, apresenta sintomas (relacionados ou não à próstata) e procura o seu médico. Quando investigado, recebe o mesmo diagnóstico do indivíduo A. Devido à doença já avançada, a proposta de tratamento é de oferecer conforto e dignidade, sem medidas heroicas em busca do Santo Graal da cura. Morre aos 60 anos.

  • O indivíduo A teve uma sobrevida de dez anos após o diagnóstico. O indivíduo B, apenas dois anos. Troque os indivíduos A e B por dois grupos homogêneos com milhares de pacientes cada e temos uma “forte” evidência científica de que o rastreamento melhora a sobrevida da população estudada em oito anos.

Ou não.

Os dois indivíduos morreram no mesmo ponto da linha de tempo. E o paciente A teve dez anos de sobrevida estigmatizado pelo diagnóstico e submetendo-se a tratamentos desagradáveis, dispendiosos e com importantes efeitos adversos, com uma qualidade de vida certamente diminuída. Epic fail.

Viés de auto-seleção

Indivíduos que se submetem a programas de rastreamento obviamente têm uma tendência a preocupar-se mais com a própria saúde. Logo, tendem a informar-se melhor sobre o assunto e a adotar hábitos mais saudáveis em todos os aspectos. Isso lhes confere um status basal melhor, ou seja, esses indivíduos tendem a realmente serem mais saudáveis, tendo maior reserva funcional a qualquer agressão.

Isso aumenta a sobrevida dessas populações de forma intrínseca, independente do efeito específico do rastreamento. Essa diferença entre os grupos é difícil de ser quantificada e corrigida quando analisamos os dados dos estudos, principalmente os retrospectivos.

Outros vieses e problemas logísticos

A forma de rastreamento mais defendida pelos urologistas combina o toque retal e a dosagem do PSA no sangue.

O toque retal faz parte do exame físico obrigatório em muitos contextos, como o de pacientes politraumatizados, com queixas urinárias, sangramentos gastrointestinais e algumas outras condições. Não torna ninguém menos homem, não tem grandes riscos diretos, não deveria ser motivo de muita preocupação.

Mas, convenhamos, não é nada agradável. E, acreditem, não é menos constrangedor do outro lado da luva. Mais do que acaciano o discurso de que esse desconforto é muito menor do que aquele causado pela doença e do que a própria morte. De fato, seria, se o rastreamento realmente identificasse os indivíduos que vão se beneficiar do tratamento precoce. Mas como isso não ocorre, talvez não seja tão boçal querer evitar esse desconforto desnecessário  não há nenhum grande problema com o toque retal em si, mas isso não quer dizer que devemos ser sádicos a ponto de obrigar todo mundo a submeter-se a ele sem qualquer benefício.

O PSA, por sua vez, é uma variável quantitativa contínua, ou seja, a dosagem pode assumir múltiplos valores, dentro de uma escala. Como o que queremos é definir se um paciente é ou não portador da doença, temos que escolher um ponto de corte para transformar o resultado do exame em uma variável categórica nominal (abaixo de X o indivíduo é considerado saudável, acima de X é considerado doente). Para isso, é preciso escolher o ponto com a melhor relação sensibilidade x especificidade, para perdermos o menor número de diagnósticos e minimizarmos os indivíduos saudáveis erroneamente diagnosticados como doentes. Infelizmente, nenhum ponto nessa escala apresentou uma acurácia apropriada, ou seja, conseguiu identificar adequadamente os pacientes com tumores agressivos, que vão se beneficiar do tratamento.

Várias tentativas de driblar essa “pequena falha” do exame já foram feitas: avaliar a evolução dos níveis de PSA ao longo do tempo, relacionar o PSA livre no sangue com o PSA ligado a proteínas ou relacionar os níveis de PSA ao tamanho da próstata. Nenhuma dessas abordagens nos ofereceu uma ferramenta diagnóstica suficientemente precisa.

Os grandes estudos

Na medicina, a “verdade” é epidemiológica. Por mais que algo faça muito sentido, apresente plena plausibilidade biológica e todos os especialistas jurem ser legítimo, uma conduta só é plenamente justificada se os seus benefícios forem demonstrados por meio de estudos populacionais.

Temos tentado demonstrar os benefícios do rastreamento do câncer de próstata há décadas, com uma infinidade de estudos em todo o mundo, com milhares de pacientes e diferentes desenhos. Muita esperança foi depositada em dois estudos gigantescos e de longo prazo, conduzidos na Europa e nos Estados Unidos, e que se propunham a pôr um fim à discussão: o American Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian Cancer Screening Trial (PLCO), testando toque retal e PSA, e o European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer (ERSPC), testando apenas PSA.

No estudo americano, não houve nenhum benefício no rastreamento. No europeu, observou-se uma tendência a redução de mortalidade, porém com altíssimos níveis de diagnósticos e tratamentos excessivos (over-diagnosis e over-treatment).

Nos anos seguintes, uma grande revisão sistemática com meta-análise envolvendo quase 400 mil pacientes e um trial randomizado com seguimento de 20 anos demonstraram a ausência de qualquer benefício no rastreamento. Os autores da revisão sistemática apontam, na conclusão do estudo, que é muito improvável que novos estudos venham a mudar esses resultados, independente do desenho, do tempo de seguimento ou do número de pacientes acompanhados.

A briga continua

Apesar de praticamente todos os estudos apontarem na mesma direção, o rastreamento ainda encontra defensores em inúmeras discussões científicas. Na maioria das vezes, os adeptos do rastreamento acabam por ignorar boa parte das evidências e se perdem em devaneios sobre como é inebriante “salvar uma vida” ao “curar” um câncer agressivo. Parecem esquecer todo o prejuízo associado a esta ação e a possibilidade  muito forte  de na verdade não terem ajudado seus pacientes com essa postura.

O Instituto Nacional do Câncer, um órgão ligado ao Ministério da Saúde que coordena as ações de prevenção e tratamento de câncer no Brasil, embasado por todas essas evidências científicas, chegou a desaconselhar, em 2008, a realização do rastreamento para tumores de próstata. Após grande revolta das sociedades de urologia e forte pressão política, o INCA voltou atrás na decisão, com um patético “veja bem, não foi bem isso que eu quis dizer” e caindo no erro grotesco de separar a indicação do rastreamento entre políticas de saúde pública e realização de exames “individualmente”.

De forma objetiva, com os dados que temos até agora – que são sim consistentes – não há justificativa para recomendar o rastreamento de câncer de próstata. Na verdade, há dados suficientes para desaconselharmos a realização do rastreamento, que parece trazer mais malefícios que benefícios.

Beiram os 100% as chances de alguém retrucar que “pode ser” que haja benefício e que novos estudos podem mudar a recomendação. Assaz improvável, porém sim, sempre “pode ser”. Mas convenhamos: é no mínimo irresponsável propagar como necessidade absoluta uma conduta baseada em um “pode ser” tão distante. Isso é ainda mais catastrófico quando abordamos a questão de forma que o paciente se sinta um ogro idiota se por acaso ousar ficar desconfortável com a técnica de rastreamento. E é exatamente isso o que temos feito.

A última cartada

A última moda no discurso pró-rastreamento é “discutir o assunto” com o paciente:

“Se o indivíduo procurar o consultório desejando fazer o rastreamento, não temos como negar isso a ele.”

Argumento dos mais simplórios, por dois motivos:

1. O paciente não é um cliente cujos “desejos” devam ser prontamente atendidos; o papel do médico é indicar a conduta com melhor evidência científica – que o paciente pode aceitar ou não. Ou também ficaríamos impossibilitados de dizer "não" a um paciente saudável que procurasse o médico “desejando” uma angio-ressonância de crânio para rastreamento de malformações arteriovenosas?

2. Depois de décadas ouvindo dos especialistas em todos os meios de comunicação que todo mundo precisa do rastreamento, que todas as pessoas legais fazem e que quem não fizer é mulher do padre, é óbvio que os homens irão aos consultórios com essa demanda – além de muitas vezes o fazerem sob forte “estímulo” familiar e social.

Daqui de onde vejo, tenho razoável confiança em afirmar que o rei está, de fato, nu. E aos poucos o mundo está começando a enxergar melhor.


publicado em 28 de Fevereiro de 2012, 21:01
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Lucas Pedrucci

Gaúcho expatriado, é pianista aposentado, jogador de rugby em fim de carreira, ex-oficial da FAB, paraquedista das categorias de base e meditante wannabe. Seu principal hobby é a Medicina, que estudou na USP e tem praticado no Hospital das Clínicas.


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