Eu venci Deus

“Foi a única escapatória, Clarinha. Ou eu fugia, ou morria. Foram 11 milhões de euros jogados no lixo. E, infelizmente, um bom garoto a menos no mundo. Eu negociei a ressurreição dele, mas, quando fiz o que tinha de ser feito, o corpo continuou lá. Gelado e pálido.”

Dr. André vivia uma vida tranquila. Era um cirurgião que sempre acreditava no poder de muito trabalho e muito estudo. Não sentia-se cientista, até porque esse ocorrido passa em 2025, cinco anos antes de ele começar a estudar a célula-ghost. As famílias o endeusavam a cada cirurgia bem sucedida. Cirurgiões cardíacos têm esse status de semi-deus perante as famílias dos pacientes.

(Nota: Este conto tem relação com outro anteriormente publicado aqui: Não existirá amor em SP. A leitura de um não é necessária para compreensão do outro, mas eles acontecem em um mesmo universo e linha do tempo.)

A sua cidade natal – Lisboa – tinha um inverno agradável. Nada caótico como costuma acontecer em Madri. Portugal como um todo, aliás, seria um bom lugar para morar, não fossem as recentes perturbações religiosas: em 2023 a voz de um messias foi ouvida descendo os céus. Pastores e padres reforçavam suas teses. A web-mídia era inteiramente religiosa em todo o mundo. Tendência iniciada no ocidente quando igrejas começaram a comprar espaço na programação de grandes canais de web-televisão. Ou, como chamavam antigamente, apenas televisão.

André era cético; um ateu. Acreditava no seu estudo profundo sobre a vida e nas suas práticas medicinais. Para ele, esse era o poder divino: salvar vidas. Aos 36 anos sua rotina era passar horas estudando a anatomia do segundo mais importante órgão humano: o coração. O primeiro era o cérebro, porque ele é que torna o coração real.

– Clarinha, eu estou um pouco bêbado, mas eu juro que se contar isso pra Alice, eu te mato – falou André, rindo. – Ela não pode nem imaginar que sei como você é linda só de calcinha. Ela é amiga da minha namorada, melhor amiga. Se souber de algo, ela não vai facilitar o nosso lado!

– Seu bobo! Até parece que contaria algo, André. Mas se não continuar me falando o que aconteceu quando começou a brincar de coração... eu acho que vou pensar seriamente em te dedurar, garanhão.

– Então...

Sem filhos ou compromisso fixo com alguma mulher, o médico passava horas a fio estudando o funcionamento do brinquedinho que bombeia o nosso sangue. Fazia micro-análises, costurava o revestimento, examinava células. Era um especialista. Dos mais fanáticos.

Gatos e cachorros que ele via pela rua eram sumariamente sequestrados. O destino era a mesa de operações. Animais de rua eram cobaias dos seus experimentos cardíacos. Alguns animais uivavam antes de serem operados. Sentiam o medo ao entrarem em sintonia com os outros bichos que tiveram seus peitos abertos ainda vivos. Com um cuidado milimétrico, ele cortava as veias e artérias ao redor. Com suavidade retirava o coração do animal e o entregava à morte. O objetivo maior era religar o bombeamento de sangue em animais que tiveram parada cardíaca. Ele queria devolver a vida para um animal morto. Descobrir a cura para o infarto de animal era um passo mais próximo de descobrir a cura para o infarto de pessoas.

Conforme os meses passaram, André tinha cada vez mais êxito em suas cirurgias. Animais estavam voltando à vida algumas horas após morrerem.

Conseguir corações humanos para experiências médicas não é tarefa tão simples. Principalmente quando esse tipo de trabalho acontece por conta própria, sem apoio de nenhum hospital ou clínica específica. O segredo para resolver esse problema era um só: tráfico de órgãos. Tarefa suja que não cabe detalhamento aqui, mas que envolve tráfico e morte de crianças, moradores de rua e presidiários. Todos, obviamente, vindos dos países mais pobres e mais desesperados.

– Verifique se meu web-fone está grampeado. Amanhã tenho uma ligação importante.

– De quem é esse celular?

– Agora não importa.

– Sem grosseria, André.

– Só resolva isso, por favor.

Dia seguinte:

– Cinco corações, Ivana, por favor, entregues em coolers. E não podem ser corações de crianças, pelo amor de Deus. Já pedi para que sejam apenas de presidiários.

Horas depois:

– Preciso de toda essa mercadoria até amanhã, ok?

– Sem problemas.

André havia comprado alguns produtos químicos de clínicas clandestinas para tentar criar uma substância que reparasse os danos que um coração humano sofria. Ao misturar os produtos, esperar horas, anotar processos, a mente do médico estava ansiosa. Seu experimento era grande e poderia reviver um coração.

Ao ver um coração voltando a bater em seu laboratório, ele não conteve as lágrimas. Sua injeção de proteínas estava pronta para funcionar. Ela reparava os danos celulares das veias, de artérias e do músculo cardíaco em si. Ao ser bombeado sangue pelo seu núcleo, ele começa a mudar de cor e, como um bumbo tocado gradualmente, aumenta sua velocidade.

Miguel era o atual CEO da GLife. A empresa, cinco anos antes, ainda respondia pelo nome Google. Com a morte de seus fundadores, Larry Page e Sergey Brin, teve seu nome alterado para GLife. Cada vez mais ela fazia parte de todos os momentos da vida de seus clientes.

Desde a velha tecnologia de internet até tecnologia para partos e cremações digitais. Sim, nesses tempos não havia mais espaço para enterrar corpos. Quer dizer, espaço havia, mas eram lotes caríssimos. Milhões de corpos eram digitalmente cremados por uma máquina parecida com um scanner em proporção aumentada. Um feixe de luz passava por baixo do cadáver, que se desintegrava em meio ao clarão. O corpo tornava-se um mero registro digital para a família. Vinte anos antes, aos parentes eram entregues as cinzas em um baú; em 2025 era um cartão com o código genético completo.

A GLife, por todo esse envolvimento com a vida dos clientes, expandiu seus interesses para a indústria bélica e, principalmente, para a medicina. Miguel Lopez, o CEO, era completamente fissurado por curas e cirurgias. Ele iniciou a faculdade de Medicina de Madri, mas não conseguiu terminar. Essa sempre foi uma grande frustração para ele. Tornou-se administrador e voltou a ter contato com a atividade médica depois de passar a comandar a GLife. Ao saber dos recentes desenvolvimentos de André em Portugal, resolveu sair da Espanha e viajar até Lisboa para acompanhar de perto o tão comentado assunto: o médico que religava corações.

Reportagens e manchetes como "Homem brinca novamente de Deus" e "Humano estúpido" se misturavam com algumas poucas na linha de "Gênio dá nova esperança à vida".

A fama do médico crescia. Assim como o ódio generalizado contra ele.

– Ora, André, sua evolução nessa pesquisa é notável. Como não quer apoio de 6 milhões de dólares no seu estudo?

– Obrigado, Miguel. Para mim não é interessante repassar os créditos desse estudo para uma companhia. Foi através de muita fissura pelo assunto que cheguei nesses resultados. Como eu posso passar toda a credibilidade disso à GLife? E do nada?

– Doutor, aí que está o engano. Não é para uma empresa que você vai passar. Vai dividir conhecimentos com a humanidade. Fará um homem menos triste. Um homem que perdeu a sua única filha e a viu agonizando sem poder fazer nada. Um homem que não pôde usar seu conhecimento de medicina para ajudá-la. Um homem que teve sonho de ser médico e não foi competente para dar continuidade aos estudos. Se eu fosse escolher alguém para ser, eu seria você, Doutor André. Me deixe investir nisso.

A negativa de André era definitiva. Ele não queria se submeter a isso, e seus planos estavam bem traçados. Ele havia criado a substância que em pouco tempo provavelmente seria a mais valorizada do mundo. E ele era dono das patentes.

Faltava apenas um nome.

Após algum tempo pensando, tomou a decisão: chamaria a substância e a injeção de IBG. Sigla para I Beat God.

Em português bem claro, "Eu Venci Deus".

Os primeiros experimentos com a IBG aconteceram com animais. Após algum tempo, o médico iniciou o processo em humanos. Tinha chegado a hora de fazer a experiência sem que o coração fosse retirado do peito da pessoa morta. As mãos de André tremiam ao olhar o corpo sujo que estava em cima de sua maca. A injeção de proteínas estava pronta. A IBG seria aplicada. André não conseguia segurar a ansiedade.

Colocou a sua música favorita para tocar no sistema de áudio do laboratório, talvez isso diminuísse a tensão.

Nas caixas podiam-se ouvir versos quase centenários de Frank Sinatra. E, conforme "My Way" se repetia no sistema de som, uma pulsação ritmada começava a ser ouvida. Podia ser a cozinha rítmica na big-band, mas era um coração morto voltando à vida. O grande susto: um forte acesso de tosse. Não do médico, mas sim do paciente recém-operado. Do paciente que cinco minutos antes estava morto.

Após ter o peito costurado, o presidiário sem vida se tornou um homem de volta ao corpo. Ele tossiu e abriu os olhos, que pareciam trazer dor acumulada – afinal, não se dá anestesia a um morto. Nem se anestesia uma alma que descansava em paz e é trazida de volta, à força, para esse planeta gentil.

Instantes depois, o homem, ainda deitado sobre a maca, disse algo que não deu para interpretar; suspirou fundo e novamente morreu. Em um intervalo de 13 minutos André devolveu a vida e assistiu uma esperada morte.

– Você não resistiu. O próximo vai resistir. – Vociferou o doutor.

Assim, André fez cinco ressurreições parecidas. Revezava-se entre corpos de presidiários e de mendigos. Eles sobreviviam entre 7 e 20 minutos antes de alcançarem a segunda morte. Mas isso aconteceu apenas até o sexto corpo.

– Quem é você?

– Eu... eu... sou... o... – ele gaguejava diante da sua própria obra – Doutor André. Não posso dizer que sou seu criador, sou seu devolutor. Bem-vindo de volta à vida.

– Como assim bem-vindo? O que tá acontecendo? Esse é mais um estágio da minha morte?

– Não, er... Paulo – assim ele apelidou o, até então, indigente. – Você está novamente em seu corpo. Você está vivo novamente.

– Mas como se eu não pedi isso? Como Deus pôde permit...

– Paulo, eu venci Deus – diz André, interrompendo.

"Seu André, eu não sou Paulo e não pedi esse corpo de volta. Se realmente você é o homem que me devolveu ao mundo, saiba que eu te condeno. Esse intervalo estúpido que você chama de vida, eu chamo de pagamento. As lembranças estão começando a fluir melhor na minha cabeça e agora lembro melhor da minha família. Mas quem disse que eu queria lembrar?

"Se perceber pela minha pele, vai ver que eu não durmo no mesmo tipo de cama que você. Que a minha cama é uma pouco mais áspera. Doutor, estou sentindo as mesmas dores de quando eu andava podre por aí. Podre de roupa, de dentes, de coração. Acho que você foi bom em devolver a vida, mas pouco bom pra resolver meu problema de pulmão, porque eu mal consigo respirar e tá doendo tudo. Doutor, o senhor é um filho da puta. Muito."

O médico, como ele mesmo disse, venceu Deus. Tarefa sugestiva. Mas há um tipo de conflito que ele nunca conseguiria vencer: o auto-conflito.

O doutor chora em seu banheiro após ouvir a história do mendigo. Do mendigo para quem ele acabara de devolver a vida. E assassinar.

Para quem esperava a gratidão, o relato do homem veio como um tiro. A grande pergunta que o doutor se fazia era "como um mendigo era bom assim com as palavras?". Talvez a visão de que todo morador de rua é ignorante tenha caído por terra. Talvez ele tenha sido mais um que surtou e decidiu que não queria fazer parte da chamada "ala politicamente correta" desse mundo.

A decisão de dar fim à ressurreição do morador de rua veio após um embate. Paulo, em sua primeira morte, morreu doente e com os órgãos praticamente podres. A ressurreição dava conta do coração. As proteínas trabalhavam apenas nesse músculo, e o restante continuava dolorido, podre, ineficaz. Ao ver a lágrima de dor do seu paciente involuntário, André precisou dar fim à nova vida do mendigo.

Enquanto experimentos sobre-humanos aconteciam na maca de André, o presidente da GLife, Miguel, virava mais um copo de whisky e colava o nariz em mais uma carreira do pó branco que voltou a ser moda daquele momento: a cocaína. O cartão que usava para separar as carreiras nunca era aquele que continha o código genético da sua filha. Ele havia perdido a garota, que teve a vida interrompida com um tiro. Consequência da reação de um assalto; seu pai Miguel acelerou o aeromóvel. O veículo que estava conduzindo a filha de Miguel à escola, agora a conduzia ao hospital mais próximo. Correr pela vida não foi suficiente. A garota havia morrido.

Algo que agora começava a passar pela cabeça do doutor André é que ele precisaria sempre certificar-se que suas cobaias tivessem morrido apenas com problemas de coração. Qualquer outro órgão afetado não conseguia ser regenerado pela IBG.

Aos poucos, o laboratório de André tornou-se um grande necrotério. Ele tinha devolvido a vida para mais de 20 corpos e a retirado minutos depois. O cheiro de cadáver antes era minimizado com formol, mas o forte calor fazia com que nem mesmo uma piscina do produto fosse capaz de diminuir o cheiro em alguns momentos.

Vomitou pela primeira vez em seus cadáveres.

Uma hora mais tarde, o médico estava completamente transtornado com o que era para ser um motivo de orgulho. Enquanto uma lágrima caía na taça cheia de vinho, ele pensava se queria dar continuidade ao processo. Pegou seu tablet, fez contato via Skype.

– Rita, preciso de mais alguns corpos.

– Quantos?

– Treze.

– Um milhão e meio. Em dólares, não euros.

– Como assim?

– Mendigos estão escassos, mas tenho um contato que me consegue até 20 nigerianos por mês. Você compra 13 e eu consigo passar 7 para a universidade de Medicina do Porto. O custo eleva porque eles são trazidos vivos.

– Nossa, me diga, então eles podem morrer da maneira que eu preferir?

– Não exatamente, André. Eles são mortos assim que chegam na fazenda do Tobias.

– Eu vou até a fazenda, eles precisam morrer do coração.

De cirurgião a semi-deus a médico assassino.

Enquanto o lado mais podre da medicina emergia no caráter de André, Miguel tinha a vida perturbada por padres e pastores. Esses, a mando de Madalena, esposa de Miguel, tentavam lhe mostrar um caminho do bem. Se é que existia bem na cabeça do homem afundado em perdas pessoais e vícios.

– Aqui. Essa é a palavra que te salva das aflições, meu caro Miguel. Isso dá sentido à existência. Nós sabemos que Jesus desceu dos céus para falar conosco, pode ser a nossa última chance de redenção antes do arcanjo de Deus travar a batalha do apocalipse.

– “E vi um anjo forte, bradando com grande voz: Quem é digno de abrir o livro e de desatar os seus selos? E ninguém no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, podia abrir o livro, nem olhar para ele. E eu chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler, nem de olhar para ele.“ Apocalipse, capítulo 5, do versículo 2 ao 4.

– Todos somos iguais, Miguel. Sujos perante o amor que Deus oferece. Precisamos limpar nossa alma antes dos últimos dias. Eles estão próximos.

Assim, a bíblia era citada ao presidente da GLife. Presidente que tinha nome de arcanjo.

Após os testes de André com 10 nigerianos sequestrados, o médico decidiu que que estava na hora de procurar algumas famílias ricas que haviam perdido entes queridos. O objetivo: negociar a ressurreição.

Obviamente sua proposta era desacreditada e temida no começo, por isso ele resolveu apresentar seu show de ego para as famílias. Queria provar que não estava ali para brincar com o sentimento de ninguém. Pierre, um abalado chefe da família e fundador da maior empresa de aeromóveis da Europa viu diante de seus olhos o cadáver de um negro forte começar a ter espasmos que indicavam: a ressurreição existe. Assim, com a família ainda boquiaberta, um contrato de 11 milhões de euros foi fechado. A missão era devolver a vida à Dora, uma garota de 17 anos vítima de uma infecção cardíaca fatal. André pediu apenas para que a família retirasse as máscaras e deixasse o laboratório. Que o deixassem tranquilo para o procedimento.

Antes de tocar o corpo de Dora, o médico ainda estava nervoso, afinal, era a primeira vez que o trabalho não era descompromissado. O cheiro de dinheiro ficou mais forte que o cheiro de decomposição, que diminuía a cada batida do coração da criança.

– Oi, Dora.

– Quem é você? Onde eu tô?

– Você havia perdido a vida, querida. Mas seus pais decidiram devolvê-la a você e me contrataram.

– Mas quem é você, como fez isso?

– Pode me chamar de seu melhor amigo. Eu dei uma injeção no seu coração que o religou. Você ficou três dias morta.

E, abraçado com Dora, que chorava, ele sorriu. O branco dos seus dentes até poderia cegar alguém. A felicidade e a emoção tomavam conta desse momento. Ao entrar em contato com a família de Dora, o médico deixou que ela desse o primeiro alô.

Com 11 milhões de euros, muitas pessoas já dariam cabo à qualquer tipo de plano que não envolvesse diversão direta. André era diferente, investiu tudo em suas pesquisas, nos ingredientes do IBG e negociou mais nigerianos. Ele não queria que seus feitos vazassem na web-mídia, não queria interferência de grandes corporações, desse modo, apenas esperava que a morte acontecesse ao redor, assim, ele podia desfazê-la.

Sabendo do falecimento de mais um importante jovem na alta sociedade, o médico rapidamente entrou em contato com a família quando descobriu que a morte havia sido por problemas no coração. A família ficou reticente. Eram extremamente religiosos e acharam que o médico estava brincando de deus. Mas o egoísmo de poder ter um filho de volta é muito maior do que enfrentar um simples deus no qual acreditou-se a vida inteira. Após oito dias da morte de Daniel e intensas negociações, a família autorizou sua ressurreição.

Com mais um contrato de 11 milhões de euros assinado, o médico iniciou o processo. Ao abrir o peito do jovem morto, viu que o coração estava bastante danificado devido à decomposição e, apesar do cheiro de morte lhe atrasar o raciocínio, deu continuidade ao trabalho. Ao injetar a IBG no coração de Daniel, notou que algo estava errado. A cor do coração, que nos procedimentos anteriores mudava para um vermelho vivo, agora estava mudando para um roxo pavoroso. O coração começou a bater desordenadamente e inchar ao ponto de explodir, deixando pedaços de carne podre por todo o laboratório.

André precisou tirar os pedaços podres que grudaram em seus óculos. O coração havia explodido e o doutor havia falhado. O corpo de Daniel foi necrosado por inteiro devido à aplicação de IBG com prazo de validade vencido. O médico havia aplicado proteína podre em seu paciente. Ele não sabia que a IBG tinha vida útil de 7 dias. Passado esse período, o produto se tornava extremamente perigoso até para manusear. Se aplicado em algum órgão, não aconteceria nada que não fosse destruição interna. Como Daniel já estava há 9 dias morto, a única coisa que aconteceu foi a rápida deterioração do corpo.

Seu segundo contrato foi por água abaixo. Talvez, sua vida inteira tivesse, naquele momento, ido por água abaixo. Ele só ainda não sabia o tamanho do problema que tinha arrumado. E nunca soube exatamente se o corpo estava decomposto demais ou se apenas sua IBG podre foi a responsável pelo estrago. Nunca foi atrás da resposta.

– Eu acabo com a sua vida, seu desgraçado. Sabia que era tudo ilusão, essa promessa de devolver o meu filho. Você promete isso diante de um pai destruído e depois vem aqui comunicar que ele explodiu? Você vai morrer. Eu te mato, filho da puta ganancioso!

– Acalme-se, acalme-se... Teixeira... Após o ocorrido eu descobri a falha. Estou infinitamente constrangido pela situaç... – e o médico foi atingido por um fortíssimo soco na boca. Ele quase desacordou, mas manteve-se são para ouvir novamente:

"Você vai morrer, doutor André!"

Teixeira estava fora de si e prometeu vingar-se daquele que brincou com a vida (?) de seu filho. O médico agora corria o risco de ser assassinado. O que deixava a família Teixeira ainda mais angustiada e raivosa era o fato de não poder destruir a reputação do Dr. André Bandeira na web-mídia. Eles eram de uma família tradicional em Portugal e não podiam ser pegos entrando na brincadeira do médico metido a deus. Eles estavam assombrosamente próximos de acabar com a vida do, segundo eles, nazista da medicina. Passadas 47 horas do ocorrido, André soube que Teixeira contratou um assassino.

– Clarinha, faz quatro anos isso tudo. Eu não tiro da cabeça a expressão daquele pai. Ele seria o meu assassino e eu não poderia ter raiva alguma dele nessa ou em outra vida. Esse ocorrido acabou comigo, por isso vim para São Paulo, por isso passei a estudar a célula-ghost. Gostaria de me comunicar com alguns dos mortos que ressuscitei. Pedir perdão pelos meus atos.

– André, se hoje você tem esse arrependimento, é claro que os espíritos podem te deixar em paz.

– Não é bem assim. Praticamente todas as noites eu sonho com rostos desintegrando-se na minha frente. As lembranças com os negros são as mais perturbadoras. Um deles repete nos meus sonhos as mesmas palavras que disse quando o ressuscitei: "Te devo tudo. Vou te pagar com tudo que eu puder." Dois minutos depois, eu o devolvi ao mundo dos mortos. Não sei se o espírito daquele homem sai de perto de mim em algum momento. Tenho pesadelos com ele me dando abraços.

– Mas a família Teixeira não veio atrás de você aqui no Brasil?

– Não. Acredito que o maior incômodo para eles era a minha permanência na alta sociedade portuguesa. Eles sabem que estou em São Paulo, já fui avisado disso, mas parece que absorveram o erro médico.

– Não chame de erro médico, André. Foi um erro de caráter. Você brincou com a vida.

– Não preciso de ninguém, além de mim, me falando isso.

Assim, André escondeu da sua nova amante que na noite anterior havia recebido uma ligação de Ernesto Lopez, um senhor de 85 anos, pai do ex-presidente da GLife, Miguel Lopez. Miguel tinha sido encontrado morto em sua enorme mansão em Madri. Ao lado do corpo estava uma bíblia parada no livro do Apocalipse. Ernesto disse que soube da existência de André através de um documento encontrado no tablet do filho. O nome do arquivo era "el hombre que quiero ser", e nele estava tudo sobre o processo de ressurreição.

Ernesto ofereceu ao médico a quantia de 30 milhões de dólares para ressuscitar Miguel. O doutor negou, mesmo precisando terrivelmente do dinheiro para dar continuidade ao estudo da célula-ghost. Ernesto insistiu. André balançou.

– Há quantos dias ele está morto?

– Três.

– Qual a causa da morte?

– Não quero falar sobre isso. Quero apenas a vida dele de volta.

– Ernesto, eu apenas posso devolver a vida àqueles que tiveram algum dano no coração. Nenhum outro órgão responde ao procedimento com a proteína IBG.

– O dano dele foi no coração, doutor. Foi um enorme dano ao coração.

– Eu retorno a sua ligação. Até mais. – E desligou o telefone sem esperar a resposta do outro lado.

André sabia que tinha apenas mais 4 dias para realizar o procedimento, mas não queria deixar para a última hora caso decidisse por operar. Seu cérebro fritou em dúvidas angustiantes. Ele daria de volta a vida a um homem poderoso. Estaria eternamente amarrado a esse homem que lhe deveria tudo. Mas que tinha uma estranha obsessão por ele. Não entendia se era fixação sexual, profissional ou algo que o valha. Após inúmeros momentos de assédio para que André levasse a pesquisa para os laboratórios da GLife, André percebeu que não gostava de ter contato com Miguel Lopez, mas nunca deixou de adorar ver grandes quantias de dinheiro ao seu redor.

– Ernesto, eu aceito. Primeira condição: serão 40 milhões de dólares. Segunda condição: o corpo deverá ser enviado ao Brasil em jato particular. Terceira condição: devolver a vida a Miguel Lopez é uma possibilidade, não um fato.

– Tente de tudo, doutor.

Com a agulha empunhada o médico viu-se cara-a-cara com o corpo de Miguel Lopez, CEO da GLife, a empresa mais poderosa do mundo. Dessa vez, diferente de algumas outras, André não estava nervoso. Estava apenas indeciso quanto ao que realmente faria. Ele poderia deixar o cadáver apodrecer e simplesmente dizer ao pai do morto que não conseguiu. Ou poderia engordar monstruosamente a sua conta bancária e financiar diversos outros estudos com a célula-ghost, seu único interesse naquele momento da vida.

Antes de se envolver com a célula-ghost, André estava terrivelmente amargurado com o rumo que sua vida tomou ao chegar em São Paulo. Ele buscava fuga em religiões e não encontrava algo com que se identificasse verdadeiramente. Seu peso sob os ombros era grande demais para uma simples "Pai nosso que estais no céu..." resolver. Porém, no ápice do desespero, o médico foi apresentado ao médium Edson Ribeiro. Esse o colocou frente a frente com alguns conceitos do mundo espírita. Nesse momento ele sentiu-se menos desconfortável com a vida.

– André?! – Gritou um assustado Miguel.

– Sim.

– O que se passa?

– Force a memória, você vai entender rapidinho.

Miguel estava de volta.

– Eu fui ressuscitado?

– Foi.

– A mando de quem?

– Ernesto, o seu pai.

– Entendi. Mas eu não estou me sentindo bem. Parece que não esqueci alguns momentos que passei nessa breve morte. Palavras ecoando. Que dor fortíssima... E a palavra "persona" não sai da minha cabeça.

– Persona vem do latim. Significa máscara, daquelas de teatro. Você pretende usar alguma máscara na sua nova vida?

– Pelo contrário, pretendo derrubar todas que eu puder.

O que André não sabia era que Miguel, ao ser reencarnado, agora liderava um estudo espiritual sobre a raça humana. E ninguém era mais protagonista do mau-caratismo humano do que Dr. André.

– Eu te devolvi à vida, Miguel. Eu venci a sua morte.

– Você pode ter vencido Deus e a minha morte, mas eu não; eu me aliei a ela e as coisas vão mudar daqui para frente.

E aqueles foram tempos de crise espiritual. Mesmo já passados alguns anos da principal revelação religiosa daqueles tempos, tudo continuou muito atribulado. O principal motivo de discórdia era o chip Persona, criado pelo médico e cientista Dr. André Bandeira. A população – tão passiva quanto a geração de 2010 – não questionou os motivos do que lhe acontecia. Apenas aceitou o chip como uma simples vacina dada por seu confiabilíssimo governo.

Assim, em 2030 houve o maior caso de tráfico humano já registrado. As principais capitais do planeta privatizaram cérebros e corpos de suas populações. Esse era o maior benefício dos produtos GLife: domínio.

Miguel Lopez, em uma segunda chance de vida, novamente tornou-se presidente da companhia e agora parecia incitar uma revolução mundial. Queria briga. E assim proibiu seus cidadãos de decidir sobre de qual lado, esquerdo ou direito, andariam suas vidas. Foi o que podemos chamar de escravidão digitalizada. Uma guerra sobre autonomia em que poucos foram ao campo de batalha, mas entre ausentes e presentes, a derrota veio para todos.

Quem poderia imaginar que a personificação do dito arcanjo Miguel – líder das tropas de Deus no livro do Apocalipse – seria daquela forma: corporativa, ditatorial, caótica. Menos ainda que os inimigos de Deus éramos nós, humanos.

Para o novo Miguel, a humanidade era apenas a representação fiel de um nome um tanto quanto conhecido: Satã. Um inimigo a ser combatido e exterminado.


publicado em 17 de Novembro de 2012, 07:42
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Fábio Chap

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