Em fevereiro de 1966, o Godfather of Soul, padrinho e pai do funk, James Brown, entrava no Talent Masters Studio, em Nova Iorque, para gravar a canção de dois minutos e cinquenta e dois segundos intitulada "It's a man's man's man's world".
Traduzindo livremente, algo como "este é um mundo de homens", com essa ênfase da repetição em inglês (man's man's man's world). Na letra, é exaltado que todos os avanços que temos -- carros, estradas, trens, luz elétrica, barco -- foram obras de homens, mas que o mundo não seria nada sem uma mulher ou garota.
Número 124 das 500 melhores canções de todos os tempos eleitas pela Rolling Stone, a revista a caracteriza como "biblicamente chauvinista", justamente por enaltecer grandes feitos "de homens" que, no final de seus cansados dias, precisam de uma mulher. Na mesma reportagem, diz que mesmo assim, Brown conseguiu dar à canção um ar genuinamente humano.
A música tem quase 50 anos.
Uma composição doída, um som sofrido, entristecido, como se esperança quase não houvesse. Um desabafo musical em tempos de trevas, num dia ruim.
E aí eu olho, particularmente, para 2014. Depois das manifestações de julho de 2013, dos atravancados protestos na época da Copa e, agora, pós eleições, pouca coisa mudou nesse sentido. As bancadas serão ocupadas pelas mesmas pessoas e a disputa continua com os mesmos rostos. Eu tinha expectativas de que bons sinais viriam, não uma transformação ou revolução, mas uma querência de mudança.
Ora, os jovens votaram em novas caras, em novas propostas (sem juízo de valor em cada plano de governo ou propostas legislativas), ouvi muita gente desejosa de frescor e de, finalmente, alterações sociais que beneficiassem as pessoas, que andassem pra frente nessas discussões de liberdade individual.
Mas este ainda é um mundo de homens. E um mundo com pensamentos dos homens do passado.
Não será dessa vez que as mulheres terão o seu direito de escolha quando engravidam e nem tratamento adequado caso a decisão seja por um aborto. Não será dessa vez, ou pelo menos não será nada fácil, que avançaremos com a conversa sobre criminalização da homofobia e o casamento -- mais que tardia -- entre pessoas do mesmo sexo. Do outro lado, as drogas continuarão criminalizadas e a violência do tráfico continuará em nossas rotinas, a violência da polícia permanecerá corriqueira e invasiva na periferia, truculenta como sempre foi.
Este é, afinal, um mundo de homens, um mundo de coronéis e pastores. Homens da lei e de deus que não são eleitos por proporem algo, mas por atrasarem conversas como essas citadas, sob o falso bastião da proteção à propriedade e à família. No final das contas, são homens que atrasam o mundo em vez de fazê-lo avançar.
E em meio a esse medo e trevas, há que se apegar ao tanto de humanidade que se consegue extrair disso. Este é um mundo de homens em um momento biblicamente chauvinista, como tantos outros nesse espiral da história que corre, mas volta ao mesmo ponto de quando em quando.
Um mundo em que será ridículo ser chamado de "dos homens" e que nossas fotos de hoje serão tão ultrapassadas quanto essas aqui de baixo.
publicado em 07 de Outubro de 2014, 21:00