A cena é hilária. O afortunado homem casado, planejando a futura casa, sinaliza para o mestre-de-obras:

“Aqui, o recanto do guerreiro. Sinuca, chopeira e churrasqueira.”

Lágrimas preguiçosas em cair jazem no canto dos olhos. Vê-se a pose deslumbrada com a própria vitória pessoal. Atrás dele, a mulher, muito mais sensata e dona de si, sinaliza para o empreiteiro e mata a situação:

“Quarto da mamãe.”

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O vídeo integra a atual campanha publicitária de uma famosa marca de tubos e conexões. E ele é um primor não só pela piada bem sacada, mas, justamente por isso, pela captura no ar de um termo que, de tão usado, foi banalizado a um ponto de não poder ser mais levado a sério: o guerreiro.

De uns tempos para cá, é cada vez mais fácil ser um guerreiro, um herói. Foi promovido? É porque é um guerreiro. Conquistou o seu próprio terraço gourmet? Parabéns, afinal a ausência deste elemento é inadmissível na casa de um guerreiro.  Passou no vestibular: é guerreiro. O pai da Luiza, que você sabe muito bem onde estava, é um guerreiro. Pedro Bial transformou os mais 100 participantes do Big Brother em lutadores, uns bravos que batalharam dia a dia para conseguir chegar lá.

Lá.

Não estamos desmerecendo as pequenas vitórias por quais todos nós – nesse ínterim, também somos guerreiros – lutamos no cotidiano. Como enfrentar com bom humor quatro horas de trânsito todo dia ou sobreviver em um mercado de trabalho difícil, mesquinho. O problema é mais etimológico. Porra, não tem um termo mais corriqueiro, não? Chamar o honrado lutador da nave do Big Brother de guerreiro? Por quê? Porque se destacou entre os mais rasgadões da academia ou porque, porventura, salvou um amigo que se afogava? Nunca ficou muito claro isso, vejamos…

Você não é guerreiro porque juntou dinheiro e agora tem um forno de pizza em uma varanda enorme que comeu um pedaço da sua sala de jantar. Você pode sê-lo por outros motivos, campeão.

(“Campeão”. Este é outro que perdeu seu sentido.)

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Link YouTube | “Herói” ou apenas um trabalhador cumprindo muito bem o seu dever?

A imprensa, fascinada com a incrível história do transatlântico Costa Concordia, que naufragou no litoral da Toscana com quase 5 mil pessoas a bordo, tem chamado de herói o chefe da capitania dos portos Gregorio de Falco. Motivo: ele deu um esporro bem dado no comandante do navio, Francesco Schettino, que teve a pachorra de abandonar o barco antes de desembarcar todos os passageiros. Algo inadmissível para qualquer admirador da marinha e das histórias magníficas de que evoca na cabeça de meninos há séculos.

Schettino será julgado. Possivelmente como um chorume humano. Mas isso torna De Falco automaticamente um herói? Ele é foda, sim. Um cara de quem a Itália, tão carente de heróis dignos nos últimos anos, precisava. Mas ele é mesmo um herói? Ou apenas estava cumprindo seu dever honrosamente? Ele mesmo negou o título (como muitos grandes heróis), dizendo que outras pessoas mereciam ser chamadas assim. Como o tripulante peruano  que ajudou cerca de 300 pessoas a sair do navio.

De Falco é um cara sinistro, deu para ver. A gente ia adorar tê-lo por perto, cumprimentá-lo, tomar umas com ele. Mas chamá-lo de herói, assim, de supetão, pode ser mais uma vez a banalização do termo dando as caras.

Sempre que eu vejo alguém chamando outra pessoa (ou pior, se autodenominando “guerreiro”) porque, sei lá, entregou um trabalho no prazo, montou uma planilha bem-feita, a fala singela do Away de Petrópolis vem à cabeça:

“Ô, mermão, foda-se, tá ligado?”

Essa nossa geração do mimimi quer muito biscoitinho Croc para pouco trabalho. Muito “like” no Facebook para pouca dedicação. Se o De Falco visse comercial de carro dizendo que você merece esse sedã porque batalhou, chegou lá e é um guerreiro, possivelmente ele falaria:

“Vada a bordo, cazzo!”

Felipe van Deursen

<a>Felipe van Deursen</a> é editor na Superinteressante e colunista da revista Nova. Já se apaixonou por uma modelo de chiclete