Uma cliente trouxe o seguinte sonho para meu consultório:
Estava em pé no alto de um muro. Ao olhar para baixo, viu uma mulher de aparência mais velha, com cabelos grisalhos. Observa com mais atenção e percebe que a mulher era ela mesma.
Não foi preciso que nem ela, nem eu, tivéssemos o talento de um Freud ou de um Jung para interpretá-lo. Como boa parte de meus clientes por volta dos trinta anos, há nela um sentimento de imobilidade. A juventude já não se encontra no seu auge (embora ainda esteja bem presente) e há um sentimento de que não foi conquistado todo aquele mundo de glórias que planejamos para nós mesmos ao longo de nossa adolescência.
A internet está cheia de artigos sobre o tema. Tanto minha cliente quanto eu já nos esbarramos com vários deles. Poderíamos, até mesmo, nos perguntar se este sonho não seria uma forma de “chover no molhado”. Se acreditássemos nisso, estaríamos bem enganados.
Nas palavras do Cazuza: “Pois aquele garoto[a] que ia mudar o mundo/Agora assiste a tudo em cima do muro.“
Por mais que possamos discutir racionalmente toda a inercia que somos capazes de manter por anos e anos… nada como uma imagem poderosa para nos despertar. O sonho cumpriu sua missão e promoveu o bom e velho sacolejo. Toda essa introdução também tem o intuito de promover uma forma de sacolejo, talvez não tão eficiente como o causado pelo sonho, mas que pelo menos seja capaz de colocar a semente do questionamento em quem lê esse breve ensaio.
O que você anda fazendo com a sua vida?
Quero que você guarde a pergunta com você. Embora eu saiba o quanto seria bom que alguém aparecesse, num simples artigo de internet, e fosse capaz de responder uma pergunta tão cara como essa, tenho que admitir que estou muito longe de ter uma resposta.
Focaremos em outro ponto.
Qual foi a última vez que você foi capaz almoçar prestando atenção no que comia, sem todas as distrações de uma TV ou da internet? Engolindo rapidamente tudo o que tem pela frente, pensando em inúmeras atividades por fazer, planejando atividades futuras que são, em boa parte, tão impraticáveis quanto todas as outras ilusões que criou anteriormente e que não realizou até agora?
Muitos de vocês talvez pensem que este pode ser um mais um artigo sobre atenção plena e a capacidade de estar no aqui e no agora, desenvolvendo atividades meditativas, bem próximas das práticas vindas do oriente. Embora eu também tenha um profundo respeito por essas disciplinas, não é por aí que iremos.
Sabotar ou meditar?
Toda essa pressa e intromissão de outras atividades e atenções que descrevi ao falar sobre o almoço não estão aí inutilmente. Nosso psiquismo se organiza através de narrativas e, como já é bem claro para mim dentro do consultório, caso eu pergunte qual a função de fazer tantas tarefas ao mesmo tempo em que se deveria aproveitar a comida, todos nós teremos uma boa gama de desculpas.
Somos as histórias que contamos e sempre acaba existindo uma narrativa muito bem amarrada que justifica tudo aquilo que fazemos. Somos nossos maiores sabotadores.
Grande parte dos relatos que me chegam de amigos e amigas, além dos que chegam através de clientes, sobre a maior dificuldade em se meditar, surge de como se convencer sobre a prática. A meditação e o ato de estar presente no aqui e no agora andam tão fora de nossas narrativas ocidentais que, apesar de todos os estudos que comprovam seus resultados benéficos, parece existir um bom motivo para não levá-los muito a sério. Desistimos antes mesmo de tentar.
O processo anterior deve passar pelo questionamento de nossas próprias narrativas. Como se sabe, quando somos capazes de promover algum tempo de silêncio e quietude externa para nós mesmos, as vozes internas parecem surgir com bastante força. O que elas nos dizem? De onde elas saem? Qual o intuito de cada uma?
Escutar as vozes internas?
Gosto de repetir a metáfora de que o psiquismo humano age como um grande parlamento. Chega a ser engraçado o grande número de pessoas que me confidenciam ter mais de uma voz interna e que, muitas vezes, elas discordam entre si. A maior parte dessas pessoas entende isso como uma esquisitice pessoal, quando mal imaginam que se trata de um fenômeno dos mais comuns.
O intuito principal da técnica que defendo é permitir que as contradições internas possam, de alguma forma, ganhar um contorno mais definido. Não depende de nada muito elaborado, pelo menos não de início. Basta que ter atenção e ouvir as vozes que discutem e lutam por hegemonia no nosso intimo, ter um pouquinho de disciplina para anotar pontos importantes de cada uma delas e criar um registro sobre como os pensamentos surgem em nossa mente.
Como fazer?
Isso acontece através da anotação de sonhos, devaneios, imaginações. Todos aqueles pensamentos que surgem nos momentos mais inoportunos são bem vindos. De inicio, provavelmente, tudo parecerá aleatório, sem um sentido definido, mas com o tempo o que parece ser apenas devaneios, começa a demonstrar um contexto complexo e bem elaborado.
Algumas dessas vozes podem ser aliadas, outras podem nos levar por um caminho de autodestruição. Com algumas é bem possível negociar, outras precisam aprender o lugar e a hora delas. Todas elas lutam para que caiamos no comportamento automático que prepararam, ao longo de nossa vida, para nós. É essencial que sejamos, de alguma forma, capazes de dar sentido e praticidade para elas, do contrário passaremos a vida em busca de um desejo que não se afina nem um pouco com a vida que levamos.
Para quem já fez análise alguma vez na vida, deve ter percebido como o processo que acabei de descrever é muito parecido com o que acontece dentro dos consultórios. É justamente essa a intenção, promover um pensamento analítico sobre os próprios comportamentos. Nem todos precisam de um processo psicoterapêutico clínico, mas, sem dúvida, todos nós devemos conhecer um pouco mais sobre o mundo interno que nos acompanha.
A pergunta que o sonho de minha cliente faz: “você vai mesmo ficar aí parada enquanto o tempo passa?”
E a pergunta que levanto a partir dela é: “o que você anda fazendo da sua vida?”
Talvez não cheguemos a respostas conclusivas, mas, como foi perceptível para minha cliente em seu processo, o simples fato de promover tais perguntas já é um tipo de estímulo à vida.
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